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OPINIÃO ECONÔMICA
Halitinã, a viagem
PAULO RABELLO DE CASTRO
Halitinã é um barracão
com cobertura de sapê à
margem do rio Verde. Lá fica o
posto de cobrança de "pedágio"
na rodovia estadual que corta a
terra dos índios parecis. É uma
enorme área de terra reservada
aos remanescentes de poucas aldeias lá existentes, no chapadão
entre os rios Verde e Papagaio.
Na barreira do "pedágio" pagam-se R$ 10 por veículo, diretamente ao cidadão indígena que
segura a corrente de controle com
uma das mãos, enquanto guarda
na outra o talonário cor-de-rosa
do respectivo comprovante de pagamento. Em Halitinã, no nortão
de Mato Grosso -onde fomos
parados, eu e mais dois companheiros de viagem, para pagar
"pedágio" à reserva indígena-,
somos também avisados de que
fotos são proibidas... a menos que
se pague por elas. Meu companheiro Adalberto não quis insistir
em registrar uma foto daquela
placa meio enferrujada, pregada
num pau a meia altura, com uns
dizeres do governo federal e uma
faixa diagonal pintada de verde-amarelo.
Já estava escurecendo rapidamente e ainda precisávamos enfrentar o trecho mais difícil do
percurso de 800 e tantos quilômetros daquele dia. O problema não
era tanto morrer de flechada de
índio no escuro, possibilidade remota ou descartada diante do recibo de pagamento do "pedágio",
cuidadosamente guardado por
Wilson em sua carteira, mas a
chance de sermos esbarrados por
um "biminhão", como são chamadas as modernas carretas duplas, articuladas em duas seções,
que serpenteavam como lagartonas tontas ao longo do traçado
daquele caminho de chão, povoado de crateras para todos os lados.
Os motoristas são obrigados a
efetuar manobras radicais para
tentar evitar os piores buracos,
trafegando da mão para a contramão num balé de rodas incessante e alucinado, coberto pelo
véu denso de poeira vermelha que
se confunde com o resto de sol encarnado se pondo por trás da linha escura e triste do horizonte
sem fim.
Foi impossível, naquele momento, não sentir orgulho do país
que continua se fazendo e rodando, mesmo na escuridão dos seus
próprios problemas. Estávamos
ali compartilhando o caminho
com carretas carregando milhares de toneladas de soja, milho,
arroz, sorgo, milheto, algodão e
madeira serrada, carnes e equipamentos agrícolas, rumo a Sapezal, cidade fundada pelo pioneirismo de André Maggi e emancipada há apenas nove anos.
Blairo, filho de André Maggi, é
o dinâmico governador atual de
Mato Grosso, que enfrentou um
trajeto de mais de 3.000 km, em
março último, até a fronteira setentrional do Estado, para conferir pessoalmente a quase absoluta
carência de estradas, quase impassáveis no período de chuvas.
Por incrível que pareça, a Sapezal
dos Maggi não consta no "Guia
Quatro Rodas 2004". Meu companheiro comentava risonho,
com o restinho da alegria dos cariocas, que iria finalmente chegar
a um "lugar que não está no mapa".
Mas, pelo contrário, não só Sapezal está no mapa do futuro do
Brasil como já é hoje uma cidade
com gente bonita, hospitaleira,
com traçado planejado e equipamentos urbanos razoáveis. Sapezal é uma espécie de irmã mais
nova de outras jóias da colonização bem-sucedida dessa fabulosa
região que tem Sorriso, Sinop, Lucas do Rio Verde, Alta Floresta,
Campo de Júlio, Brasnorte, Juína
e muitas mais.
Naqueles grandes ermos conquistados penosamente por milhares de empreendedores anônimos, representados hoje por nomes como Pipino, Riva ou Maggi
e, historicamente, por outros tantos da terra de Rondon, como
Campos, Costa Marques, Dorileo,
Garcia, Lebrinha, Ferreira Mendes e incontáveis desbravadores
da terra xucra, naqueles perdidos
chapadões nos quais a presença
dos poderes públicos escasseia e
índio cobra pedágio, nasce a possibilidade de um Brasil constituído a partir de sua própria riqueza, que provém da terra e da força
da sua gente.
É essa força que está produzindo, não só milhões, mas bilhões de
dólares de exportação, numa
pauta diversificada de agronegócios com crescente valor agregado. Paradoxalmente, é aqui, junto aos que mais produzem, que
mais se sente a falta dos ditos poderes instituídos, em geral lerdos
ou ausentes. Cada morte numa
estrada federal, quando uma carreta se desvia da cratera na pista
e colhe uma família inteira vindo
na mão oposta, é mais um registro de sangue escorrendo pelas
paredes da incompetência administrativa pública.
Pior é o mal que não se vê. Cada
vez que falta o crédito bancário
para financiar a próxima lavoura, a próxima obra industrial,
lembraremos a estrutura de juros
sobre a dívida pública, que prejudica ou paralisa os negócios particulares. Os juros públicos flechando e matando a atividade privada no país inteiro. Ao fim dessas
reflexões de 2.000 km de rodagem,
meus dois companheiros e eu havíamos chegado à conclusão de
que, comparada à carga tributária e aos juros do homem branco,
pedágio de índio em Halitinã ainda dá mais retorno.
Paulo Rabello de Castro, 55, doutor em
economia pela Universidade de Chicago
(EUA), é vice-presidente do Instituto
Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de
crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada
15 dias, nesta coluna.
E-mail -
rabellodecastro@uol.com.br
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