São Paulo, sábado, 09 de novembro de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

Concorrência interessa aos pobres

GESNER OLIVEIRA

A defesa da concorrência constava no pacote de liberalização dos mercados vendido aos países em desenvolvimento nos anos 90. Mesmo aqueles que desejam mudar a receita deveriam manter e estimular as ações antitruste nos planos nacional e internacional.
O papel da defesa da concorrência em países em desenvolvimento é tema de encontro que termina hoje, promovido pela organização não-governamental Cuts (Consumer Unity & Trust International), em Jaipur, na Índia.
A defesa da concorrência constitui um dos novos temas da OMC (Organização Mundial do Comércio). A sua inclusão ou não na nova rodada de negociação a partir da 4ª Reunião Ministerial de Doha de 2001 será decidida na próxima reunião ministerial da OMC, em 2003.
Muitos países em desenvolvimento relutam em adotar legislações de defesa da concorrência. Argumentam que concorrência é coisa de país rico. Para que dispersar esforços e recursos escassos correndo atrás de cartéis se tarefas prioritárias como o combate à fome e à miséria merecem prioridade indiscutível? Mais ainda, argumentam alguns analistas da Índia, Paquistão e de outros países, as fusões entre grandes empresas nacionais deveriam ser estimuladas, e não inibidas, de forma a fortalecer as empresas nacionais relativamente ao capital estrangeiro.
Trata-se de uma posição equivocada. Há pelo menos duas boas razões para que países em desenvolvimento adotem legislações de defesa da concorrência, independentemente de estar ou não de acordo com o figurino dos organismos internacionais.
Em primeiro lugar, países que não controlam fusões e aquisições estão sujeitos à formação de quase monopólios por força de operações realizadas fora de suas fronteiras. Duas subsidiárias de empresas internacionais que concorrem entre si em um país qualquer podem, pela fusão das matrizes, se transformar em uma única empresa, diminuindo ou mesmo eliminando a competição no país em desenvolvimento. Quando a operação entre a General Electric e a Honeywell foi anunciada, muitas empresas que consomem equipamentos das duas unidades ficaram preocupadas. A operação acabou sendo proibida pela Comissão Européia.
Em segundo lugar, a formação de cartéis ocorre frequentemente no plano internacional, afetando diretamente o comércio. Chama a atenção a esse respeito um dos primeiros estudos empíricos acerca dos impactos dos cartéis nos países em desenvolvimento, de Margaret Levenstein e Valerie Suslow, preparado como texto de apoio ao Relatório de Desenvolvimento do Banco Mundial de 2001.
Segundo as autoras, os países mais pobres gastam quase 10% em compras de um grupo selecionado de produtos para o qual as autoridades dos EUA e da União Européia estão investigando prática de cartel. Se a análise for estendida para uma gama maior de bens e serviços, é provável que se verifique que as regiões em desenvolvimento são as maiores vítimas dos cartéis. Lembre-se de que combinar preço dá cadeia nos EUA, entre outras sanções, e que o combate aos cartéis nos países emergentes está engatinhando.
Mas os críticos da adoção de leis de defesa da concorrência têm razão em um ponto. Normalmente as leis são exigidas pelos organismos internacionais sem nenhuma atenção às características locais. Há alguns anos, uma competente economista me contou que estava preparando a lei de defesa da concorrência de um pequeno país africano. Perguntei a ela se havia consultado advogados e profissionais do país. Disse que esses detalhes seriam tratados posteriormente. Nem carecia de tradução, porque esse tipo de transplante de legislação é só para inglês ver.
Além da tradição legal e da história do país, há peculiaridades dos países em desenvolvimento que precisam ser consideradas. Por exemplo, grande parte dos problemas de concorrência desleal e preços excessivos está associada à enorme informalidade, isto é, à grande parcela de negócios que não pagam impostos nem respeitam a legislação em geral. Assim, é o próprio Estado, mediante o excesso de burocracia e de carga tributária sobre uma base estreita de contribuintes, que estimula as distorções do mercado.
Outras vezes, o mal funcionamento do mercado, ou sua própria inexistência, está associado à ausência de instituições adequadas. Afora os juros elevados, a escassez de crédito de longo prazo no Brasil decorre da falta de segurança por parte do credor de que será capaz de executar as garantias oferecidas pelo tomador do empréstimo.
Nesse caso, o problema não se limita apenas à falta de concorrência, que restringe a oferta. Uma melhor legislação de falências e a possibilidade de retomada de imóveis de devedores inadimplentes induziriam um maior volume de crédito tanto para empresas quanto para famílias que desejam adquirir casa própria.
Assim, na maioria dos países em desenvolvimento não se trata apenas de fiscalizar se os agentes privados estão cumprindo as regras do mercado. Muitas vezes o vilão da história é o próprio Estado. Em outros casos, o próprio mercado precisa ser criado mediante adequada construção institucional.
Se tais peculiaridades, entre outras, forem devidamente consideradas, os países em desenvolvimento só têm a ganhar com a adoção de regras nacionais e de um acordo de defesa da concorrência no âmbito da OMC. Isso, por si só, não assegura que o abismo entre ricos e pobres vá diminuir no mundo. Será preciso um esforço sistemático para assegurar regras multilaterais adequadas nessa matéria. Porém a ausência de regras, como na atualidade, com certeza prejudica os países mais pobres.


Gesner Oliveira, 46, é doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley), professor da FGV-EAESP, consultor da Tendências e ex-presidente do Cade.

Internet: www.gesneroliveira.com.br

E-mail - gesner@fgvsp.br


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