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São Paulo, domingo, 09 de novembro de 2003

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Os novos "donos do poder"

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

Na semana passada, foi feita uma merecida homenagem a Raymundo Faoro num seminário sobre sua obra, no Rio de Janeiro. A crítica realizada no seu clássico "Os Donos do Poder", de 1958, toma por base uma análise histórica do patrimonialismo, desde as origens ibéricas, passando pela formação do Estado brasileiro, pela República e pela ditadura Vargas. Termina como uma "viagem redonda" que leva do patrimonialismo ibérico aos estamentos burocráticos modernos. Depois de 1958, nossa burocracia de Estado passou a mirar-se crescentemente no "Espelho de Próspero" do chamado Primeiro Mundo.
Os aparelhos de Estado do pós-guerra foram ganhando, aos poucos, uma maior funcionalidade no que diz respeito à articulação dos interesses econômicos e uma maior universalidade na incorporação dos direitos sociais. Essa evolução pode ser verificada em quase todos os Estados e sociedades, independentemente do regime político (autoritário ou democrático), até alcançar um novo estágio do patrimonialismo na ordem neoliberal pós-1980.
Os novos "donos do poder" encontram apoio, sobretudo, nos estamentos estatais ligados ao capital financeiro. Enquanto a acumulação patrimonial de riqueza correu a todo o vapor, a proteção social de cunho universalizante ficou seriamente ameaçada pelas restrições fiscais. No Brasil, as meritocracias dos aparelhos de intervenção econômica avançaram mais no chamado Estado Desenvolvimentista, de 1958/78. As de proteção social foram-se atrasando desde a demissão de Jango do Ministério do Trabalho, em 1954, quando a forma mais segmentada e estamental tinha como exemplo os institutos de previdência por categoria trabalhista. Mesmo depois de unificada a Previdência, a visão integrada da seguridade social foi apenas um sonho da Constituinte de 1988.
O padrão estamental autoritário tornou-se mais rígido com a ditadura militar, interrompendo os movimentos sociais pelas "reformas de base", reprimindo a esquerda e articulando as elites burocráticas civis e militares com os velhos e os novos donos do poder econômico e político. O modelo de articulação de interesses econômicos e financeiros sofreu um abalo profundo com a crise da dívida externa do início dos anos 80, o que contribuiu para liquidar a ditadura. Na década de 90, teve lugar novamente uma transformação acelerada e centralizadora do capital e da riqueza, e a forma tradicional de divisão do Poder Executivo em ministérios setoriais deixou de corresponder à segmentação das esferas do poder econômico e social.
O governo FHC enterrou as políticas desenvolvimentistas e a era Vargas, mas aumentou o patrimonialismo e liquidou a eficiência operacional dos ministérios setoriais na sua "Aventura Liberal numa Ordem Patrimonialista" (Faoro, "Revista da USP", 1993). O próprio Ministério da Fazenda perdeu sua funcionalidade interna como gestor unificado das políticas monetária, cambial e fiscal.
Na verdade, tanto o ministro da Fazenda como o do Planejamento passaram a ser cada vez mais poderes simbólicos. O núcleo duro do poder financeiro estatal não apenas se submeteu a Washington mas copiou os aparelhos de gestão norte-americanos, e seu lócus operacional privilegiado passou a residir no BC e na Secretaria do Tesouro Nacional. São essas instituições que "administram" o câmbio e a dívida pública e negociam diretamente com o FMI e com os seus "pares" em Washington. Além disso, passaram a interferir em todas as demais órbitas burocráticas de poder, das políticas de desenvolvimento à infra-estrutura, das políticas sociais à política externa.
As forças centrípetas, tanto internas como externas, tornaram as pactações estamentais e patrimoniais das classes dominantes extremamente precárias, sobretudo depois das privatizações desenfreadas do Estado ocorridas na década de 90. As pactações nas bases dos movimentos sociais também se tornaram mais precárias e problemáticas à medida que a "exclusão" social foi se modificando. Os excluídos de hoje não são apenas os desempregados mas os que estão fora das estruturas de proteção social do Estado e tampouco estão incluídos nas estruturas clientelistas tradicionais. A discussão sobre direitos sociais, numa versão republicana de direitos universais, contrapõe-se hoje à de políticas focalizadas para atendimento a necessidades específicas da pobreza. Ambas estão convivendo lado a lado. A questão central da "Proteção Social: sem Compulsórios nem Clientelas" (ver Lena Lavinas, "Teoria e Debate", revista da Fundação Perseu Abramo, nš 55, set/out/nov de 2003,) continua pendente.
O PT é hoje um partido de massas incluídas e excluídas, com sua base burocrática, corporativa e de movimentos sociais cujos conflitos está obrigado a administrar, garantindo-lhes uma certa autonomia. O governo federal (com uma base política muito mais ampla que o PT) tem de arbitrar os conflitos de interesses setoriais e regionais, mas o núcleo político do governo não consegue comandar as fortalezas blindadas do Banco Central e da Secretaria do Tesouro Nacional. Essas foram se consolidando durante as moratórias de 1987 e de 1991 e estão soldadas pelo estamento tecnocrático que dominou esses aparelhos desde 1994. São esses estamentos burocráticos cosmopolitas que são os fiadores da "credibilidade" com os credores e com o "mercado financeiro".
Eles não representam naturalmente nem os interesses dos trabalhadores nem a soberania nacional nem mesmo boa parte dos interesses dos setores empresariais brasileiros. "No meio do caminho tinha uma pedra", como diria Drummond. O presidente Lula representa o embrião de um poder republicano e popular que é uma novidade na história brasileira. Mas, para avançar nessa direção, terá de ir desbastando a "pedreira" e traçar caminhos novos para a sua equipe de governo.


Maria da Conceição Tavares, 73, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
Internet:
www.abordo.com.br/mctavares
E-mail -
mctavares@abordo.com.br


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