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São Paulo, domingo, 09 de novembro de 2003

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LUÍS NASSIF

O centenário de Ary

Faz alguns anos, em uma viagem profissional, uma colega jornalista me contou por que os pais, italianos, resolveram migrar para o Brasil. Lá na Itália ouviram "Aquarela do Brasil", e o pai achou tão linda que julgou que um país que produzia uma música daquela deveria ser ótimo para viver. E foi apenas uma composição entre centenas de clássicos compostos por Ary Barroso.
A comemoração do seu centenário de nascimento, na semana passada, deveria ser feriado nacional. Ary não foi responsável apenas pela internacionalização da música popular. Mineiro de Ubá, Ary Barroso se tornaria um dos cariocas referenciais, o primeiro compositor brasileiro a ter reputação internacional: foi um dos pais da música brasileira moderna.
Nesta semana, no "Metrópolis", da TV Cultura, Dori Caymmi dizia que a música brasileira tinha em Villa-Lobos seu anjo maior e, abaixo dele, Noel Rosa, Ary Barroso e Dorival Caymmi. Depois, em um segundo plano honroso, Pixinguinha e Braguinha. Não consegui pegar sua fala por inteiro, por isso não sei onde colocou Tom Jobim, se ao lado de Villa ou não.
De minha parte, incluiria também Pixinguinha no primeiro time, assim como Lamartine Babo. E Wilson Batista e Ismael em um lugar de honra, ao lado de Cartola e tantos outros. Mas, seja qual for a formação, Ary Barroso estará no topo.
Ary morreu nos anos 60 consagrado como o maior compositor brasileiro, em pleno processo de ascensão de seu legítimo sucessor, Tom Jobim. Seguiu-se nos anos 70 um período de depreciação de seu trabalho, muito em razão dos "sambas exaltações", que a ignorância maniqueísta da época associava ao clima de "pra frente, Brasil". Dizia-se que "não tinha estilo", pois compusera sambas sobre a Bahia à moda de Caymmi.
Quando Carmen Miranda foi para os Estados Unidos, aliás, levou na bagagem um Ary já consagrado e um Caymmi em início de carreira. Mais tarde, ambos chegaram a gravar um LP, interpretando canções um do outro. Ouso dizer que Ary era um compositor excepcional, mas seu piano, nesse LP, não chegava a impressionar.
O início de sua carreira foi no teatro de revista, onde conheceu um de seus grandes parceiros, Luiz Peixoto, dos maiores letristas da música brasileira, com quem comporia uma das mais belas músicas da história -"Na Batucada da Vida" ("no dia em que apareci no mundo/juntou-se uma porção de vagabundos").
Depois, no início dos anos 30, envolveu-se com política e, após a vitória da Aliança Renovadora, teve problemas por suas ligações com um tio, político do PR mineiro. Acabou passando uma temporada refugiado em Poços de Caldas, tocando na boate Ao Ponto, de Nico Duarte. Lá, segundo o testemunho de seu amigo Walther Moreira Salles, teria aprendido muito com um certo maestro Lafayette, clarinetista e dono de orquestra.
Ary fez parte da geração que, na virada dos anos 20 para os anos 30, daria a moderna feição urbana ao samba. Há pesquisador sério que sustenta até que as primeiras gravações do novo tipo de samba, modernizado, substituto do maxixe, foram de Ary, e não de Noel.
O cadinho que gerou a moderna música brasileira, aquela que é plasmada na virada dos anos 20 para os 30 e que se sucedeu à fase regionalista dos "Turunas", tem a participação decisiva de Ary, mas também de Noel, Lamartine e Braguinha, Pixinguinha e Ismael, entre outros.
Na interpretação, a modernização se deu por meio de duas linhas distintas -a do lírico modernizado de Chico Alves (em substituição ao estilo rascante-dramático de Vicente Celestino, Augusto Calheiros, Gastão Formenti e do paulistano Paraguaçu entre outros) e o estilo sincopado de Mário Reis e Luiz Barbosa.
Mineiro de Ubá, Ary Barroso se tornaria um dos cariocas referenciais. Minha infância foi passada ao som de "Trolinho", "Rancho Fundo", de "Aquarela do Brasil", "Na Baixa do Sapateiro". Mas a música que me balança, que me dá uma saudade imensa de tempos que não conheci, é "Rio de Janeiro", que quase deu a Ary um Oscar nos anos 40.


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