São Paulo, sexta-feira, 10 de janeiro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

PT: do imaginário das eleições ao dia-a-dia do governo

LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS

Passadas duas semanas da posse de Lula, a dura realidade de governar um país complicado como o nosso querido Brasil começa a impor-se ao novo governo. Mesmo a melhora substancial havida nos mercados financeiros nesse período não consegue esconder as preocupações dos analistas mais isentos com nosso futuro próximo. Vou dividir algumas das minhas ansiedades em relação a isso com o leitor da Folha.
Acompanhei com atenção o excelente "Roda Viva", programa semanal de debates da televisão Cultura de São Paulo, da última segunda-feira com o ministro da Fazenda. Com um grupo de jornalistas de grande experiência e densidade, sempre sob o comando doce e eficiente de Paulo Markun, Antonio Palocci Filho pôde mostrar por que em pouco tempo transformou-se na grande estrela do novo governo. Nesse ambiente de profissionais competentes e sem a paixão que tem marcado a relação do jornalismo brasileiro com o presidente Lula, o novo czar da economia brasileira esbanjou sabedoria política, coragem e clareza. Ele respondeu de forma adequada a quase todas as perguntas inteligentes feitas por seus algozes disfarçados de cordeiros. Em nenhum momento mostrou a arrogância de dono da verdade e da moral pública que caracteriza as declarações das maiores estrelas do PT.
Lutando contra o sono -sou um desses caipiras que dormem cedo-, procurei usar toda a minha capacidade analítica para perceber em seu depoimento momentos de fragilidade, principalmente quando eram tratadas questões econômicas e financeiras. Afinal ele é um médico sanitarista, sem nenhuma formação teórica e com pouca experiência nessas difíceis áreas do conhecimento humano. Procurei também ler o que lhe passava pela alma, principalmente nos momentos em que procurava mostrar que o novo governo não será apenas um clone vermelho de FHC. Ler almas é um dom dos deuses reservado apenas a alguns mortais -e eu tenho a pretensão de ser um deles. Vou resumir para meus amigos leitores o que consegui ver e sentir nas palavras de Palocci.
Em poucos momentos de seu depoimento, fica clara a falta de uma formação econômica mais profunda do ministro. Seu grande engasgo aconteceu quando meu amigo Luís Nassif perguntou qual seria a reação do governo no caso de uma valorização mais intensa do real provocada pela entrada de capitais especulativos de curto prazo. Essa situação é hoje uma possibilidade concreta em razão da lua-de-mel que estamos vivendo e das elevadíssimas taxas de juros que o Banco Central está mantendo no mercado brasileiro. Por breves instantes, o ministro, ou melhor, sua alma mostrou-nos que ele havia caído no precipício profundo da ignorância que a falta de uma formação mais sólida provoca em qualquer pessoa. Em seu resgate veio a intuição do homem político, que não se abalou com a armadilha e soprou a frase vazia, mas salvadora: "Nosso mercado é de câmbio flutuante e a cotação do real em relação à moeda americana é fixada livremente pelo mercado".
Nassif perdeu então a oportunidade de mandar o entrevistado à lona -para usar uma linguagem do boxe- ao não retrucar que o novo governo iria repetir assim a desastrosa política de Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central de FHC, quando em 1995 permitiu a valorização de nossa moeda. Poderia, para incomodar ainda mais a nova estrela do PT, lembrar que ele estava, com essa afirmação, subscrevendo a terrível expressão do mesmo Gustavo Franco e que tanto mal causou a todos nós: "Bananas e dólares devem ter o mesmo processo de formação de preços em uma economia de livre mercado".
Um segundo momento em que a alma do ministro revelou coisas importantes sobre o novo governo veio quando os entrevistadores afirmaram que não viam, em razão das posições do ministro, uma diferença clara entre o governo de FHC e o de Lula. Palocci, que confirmou então a inflexão na linha do pensamento econômico decidido pela liderança petista em junho passado, disse que a diferença estava na visão estratégica da ação do governo de que ele participa. Mas não conseguiu explicar o que isso quer dizer na prática. Mesmo que seus lábios, comandados pelo homem político, balbuciassem algumas explicações, sua alma nos revelou que o PT não tem nenhuma idéia concreta do que isso quer dizer. Trata-se ainda de uma frase de efeito midiático, mas que retrata um corpo oco que ainda precisa ser preenchido. Essa impressão foi confirmada na posse do novo ministro do Planejamento de Lula, quando essas palavras vazias sobre o que é essa nova visão estratégica do Brasil vieram novamente à tona. Seria bom para todos nós que nos próximos dias o PT esclareça, de maneira detalhada, esse novo caminho estratégico que iremos seguir.
Mas minha impressão final, depois de quase duas horas de "Roda Viva", é que temos um ministro da Fazenda competente e que já entendeu sua função principal no governo: o guardião da estabilidade de preços e da responsabilidade fiscal. Principalmente neste momento de pressões inflacionárias importantes e de ataques populistas de vários governadores contra os cofres da República. Falta a Palocci entender que também será dele a responsabilidade de detalhar a mudança que deve ocorrer na política econômica, para lidar com constrangimentos mais estruturais de nossa economia, principalmente a ainda perigosa fragilidade externa. Em relação a isso, suas declarações foram ambíguas. Se de um lado afirmou que é preciso estabilizar a taxa de câmbio para dar um horizonte de prazo mais longo para os agentes econômicos, por outro voltou a confundir dólares com bananas. Aconselho ao ministro que mande alguns de seus auxiliares acompanharem os passos atuais do Banco Central da Argentina no momento em que pode estar começando a viver uma fase de valorização do peso, em razão de uma possível lua-de-mel do mercado e o país de Gardel.


Luiz Carlos Mendonça de Barros, 60, engenheiro e economista, é sócio e editor do site de economia e política Primeira Leitura. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo FHC).

Internet: www.primeiraleitura.com.br
E-mail - lcmb2@terra.com.br


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