São Paulo, domingo, 10 de agosto de 2008

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VINICIUS TORRES FREIRE

Falta de classe


Melhoria econômica discreta suscita exageros eufóricos e fantasias estatísticas sobre um Brasil de "classe média"

QUANDO SE viajava de navio, havia primeira, segunda e terceira classes, como a gente pode ter visto no "Titanic". A moça era de primeira, e o rapaz, de terceira. Também havia a classe operária e os camponeses, que jamais voltariam a ser uma classe, pois entre outras coisas sofriam de "idiotia rural". Havia burgueses e até aristocracia, que no entanto deixava de ser classe, segundo a escolástica marxista, que então ainda existia.
As companhias aéreas redefiniram as classes com seu politicamente correto "avant la lettre": abaixo da primeira não existe carne de segunda, mas "business class", nem de terceira, mas "classe econômica". Nesse ínterim, a classe operária, que no marxismo seria universal, minguou e se tornou uma particularidade.
Universal, pelo jeito, será a florescente "classe média" brasileira, a julgar pela animação de economistas, de "esquerda" ou "neoliberais", como se viu nesta semana de estatísticas compridas e idéias curtas.
Mas, fora do avião, o que é uma classe? Para o economista padrão, classe média é uma categoria estatística de renda: o que não está nos extremos de uma distribuição: nem na faixa mais baixa nem na mais alta (quem passa a ganhar "x" centavos a mais pula de "classe"). Para o economista, há só indivíduos que interagem em mercados. "Classe" é um meio de agregá-los "ad hoc", segundo o "nível de capital humano", renda etc. Tanto faz se tenham socialmente algo em comum que não seja seu lugar na distribuição estatística.
Brasileiros que estão entre o 1% mais rico e não têm avião costumam se chamar de "classe média". As famílias dos chamados "núcleos pobres" das novelas da Globo, por sua vez, costumam mostrar "sinais conspícuos" de riqueza superior aos dessa "classe média" de economistas do Ipea e da FGV-RJ. Mas a definição de "classe" não diz respeito apenas à identidade social ou cultural percebida por um indivíduo.
Para sociólogos, essa classe em extinção, classe era outra coisa, e não se trata de distinção indiferente para o destino econômico das pessoas.
O fato de compartilhar valores, universos simbólicos e de fazer parte de certa rede de relações sociais define, para diversos "grupos" de pessoas, possibilidades de ascensão social, expectativas sociais de "sucesso", relações com o poder. Tudo isso configura o modo pelo qual indivíduos desses grupos negociam suas possibilidades no mercado e demandam melhorias sociais (nem se mencione a essencial diferença que é dispor ou não de propriedade).
Há mais. Valores e relações de poder determinam e legitimam o modo pelo qual o trabalho de cada um será vendido no mercado, o acesso (ou veto) a esferas do mercado, para não falar do acesso à propriedade.
Tais fatores definem "classes". E ainda quão transitória ou auspiciosa, para cada grupo social, serão alterações registradas em indicadores de renda. A mudança econômica persistente também altera identidades e perspectivas das "classes", decerto. Mas é um fator entre outros.
A "classe média" dessas estatísticas recentes é apenas isso: abstração estatística. Multidões não "mudam de classe" devido apenas a efeitos de um ciclo econômico, passageiro por definição, por melhor e mais bem-vinda que seja a redução da miséria.

vinit@uol.com.br


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