São Paulo, domingo, 10 de outubro de 2004

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ARTIGO

Estados são doença e cura para a integração

Roslan Rahman-3.mar.2003/France Presse
Vestidos à venda em bairro indiano de Cingapura


MARTIN WOLF
DO "FINANCIAL TIMES"

Os mercados desejam ser cosmopolitas, mas não os Estados. Sempre que a tecnologia permitir, mercados que promovem o enriquecimento mútuo dominarão o mundo. As jurisdições, porém, são territoriais, e os mercados dependem dos Estados para sustentação judicial e políticas liberais de que precisam.
A tensão entre o desejo dos mercados de cruzar fronteiras e a necessidade de Estados que os apóiem é o ponto central do desafio criado por uma economia globalizada. O mundo não está mais simplesmente dividido em 200 e tantos países, mas em 200 e tantos países grosseiramente desiguais.
As mais importantes disparidades envolvem a qualidade das instituições públicas e privadas e dos recursos humanos no planeta. Elas são expostas pelas imensas diferenças hoje existentes em termos de renda per capita real.
De acordo com o historiador da Economia Angus Maddison, em 1820 a mais avançada economia do mundo era cerca de cinco vezes mais rica que a mais pobre. Em 1913, essa relação havia subido a 13 para um. Em 1950, estava em 33 para um. Hoje, dada a combinação de crescimento continuado no mais rico país do mundo e população crescente acompanhada por guerra constante naquele que talvez seja o mais pobre, a República Democrática do Congo, essa relação se eleva a mais de 100 para um. A desintegração das jurisdições mundiais cria dois grandes desafios para a integração das economias.
O primeiro é como prover bens públicos mundiais: mercados abertos, estabilidade financeira e monetária e, como nos lembraram os atentados de 11 de setembro de 2001, segurança.
O segundo é como difundir o desenvolvimento econômico de maneira mais ampla quando muitos dos países são incapazes de atender aos requisitos de uma economia de mercado dinâmica ou, em muitos casos, até mesmo de uma existência civilizada.
Comecemos pela economia internacional. É possível aos Estados fornecer os requisitos institucionais para a integração da economia mundial sem que precisem estabelecer instituições internacionais formais.
Foi o que aconteceu no final do século 19 e no começo do século 20. A estabilidade monetária era garantida pela adesão voluntária dos países ao padrão ouro. Os mercados abertos eram resultado de uma combinação de livre comércio unilateral, de acordo com as recomendações de Adam Smith em "A Riqueza das Nações" (1776), e tratados bilaterais.
Mas o sistema soçobrou sob o peso das rivalidades nacionais e da desordem que marcou a primeira metade do século 20.
É por isso que a ordem econômica internacional do pós-guerra passou a depender das instituições internacionais, principalmente o Gatt (Acordo Geral de Tarifas e Comércio), hoje conhecido como Organização Mundial do Comércio (OMC), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial.
Sessenta anos transcorreram desde que a conferência de Bretton Woods criou o FMI e o Banco Mundial, e 57 anos passaram desde que a Conferência de Havana resultou no Gatt. Entre 1950 e 2002, o volume de comércio internacional cresceu 24 vezes, o PIB mundial aumentou em 700% e a renda per capita mundial média quase triplicou. Está provado que é possível, portanto, expandir o comércio e a economia mundial em escala historicamente sem precedentes, a despeito da fragmentação política mundial.
Na Europa, onde a integração de jurisdição entre os países soberanos avançou mais, a integração econômica demonstra igual progresso. Como resultado, mais de um quarto do comércio mundial de mercadorias ocorre no interior da União Européia.
Apesar de todos os sucessos obtidos na integração da economia mundial, as fronteiras nacionais e as políticas nacionais seguem relevantes. Pesquisas mostram que as pessoas negociam de maneira muito mais intensa com seus compatriotas do que com pessoas localizadas a poucas centenas de metros mas do outro lado de uma fronteira internacional.
Diferentes países, mesmo que tenham níveis semelhantes de desenvolvimento, seguem políticas diferentes: o contraste entre os Estados de bem-estar social europeus e a abordagem mais individualista adotada nos EUA é um exemplo saliente. Os países também são capazes de decidir se permitirão integração de suas economias à economia mundial e de determinar o ritmo de convergência. Essas decisões, por sua vez, dão forma à economia mundial.
Agora, tratemos do segundo tema: como difundir o desenvolvimento. A boa notícia é que a aceleração do desenvolvimento na Ásia, incluindo os dois gigantes regionais, China e Índia, com 38% da população mundial em 2002, marca profunda transformação.
Os indícios sugerem fortemente que, como resultado, a desigualdade entre a renda dos domicílios ao redor do planeta está caindo.
Existe também pouca dúvida de que não só a proporção da população mundial que vive em extrema pobreza está em queda mas o número absoluto de pobres também está caindo. Mesmo o Banco Mundial, analista relativamente cauteloso dessas tendências, argumenta em seus mais recentes Indicadores Mundiais de Desenvolvimento que o número de pessoas vivendo com menos de US$ 1 por dia caiu de 1,451 bilhão em 1981 a 1,101 bilhão em 2001.
A queda dos números de pobreza extrema no leste asiático, de 606 milhões para 212 milhões no período, foi espantosa.
Cerca de 30 países em desenvolvimento, contendo perto de 3 bilhões de pessoas, estão agora em uma espiral virtuosa de crescimento econômico e desenvolvimento, com alta real nas rendas per capita da ordem de mais de 3% ao ano entre 1990 e 2001. Outros 71 países, com pouco mais de 1,5 bilhão de habitantes, conseguiram crescer em ritmo anualizado de entre zero e 3%.
A má notícia é que 54 países, com cerca de 750 milhões de habitantes, sofreram declínio em suas rendas per capita reais.
A maioria está na África sub-saariana. Muitos passam por problemas enormes de doença, pobreza, distúrbios sociais ou guerra. Precisam de muita assistência, não só financeira, mas técnica, especialmente para construir as instituições de um Estado moderno.
No momento, centenas de milhões de seres humanos vivem, como resultado, aprisionados em países incapazes de lhes oferecer condições de envolvimento produtivo na economia mundial.
Uma indicação da tendência é o fato de que, em 2002, o total de investimento estrangeiro direto na África sub-saariana, excluída a África do Sul, equivalia a só 58% do total registrado em Cingapura.
Para a economia mundial, os Estados são tanto a doença quanto a cura. Sem Estados eficientes, a atividade econômica produtiva e os níveis elevados de integração global seriam impossíveis.
No entanto, os Estados interferem, sim, e com freqüência de maneira contraproducente. Pior, muitos deles estão se desmantelando completamente. Retificar essa tendência é hoje o principal desafio que o mundo tem a enfrentar.

Os argumentos para este artigo foram extraídos de "Why Globalization Works" [Por que a globalização funciona], de Martin Wolf, e de "Globalization and Global Economic Governance" [Globalização e governança econômica mundial], publicado pela "Oxford Review of Economic Policy" em 2004.

Tradução de Paulo Migliacci


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