São Paulo, sexta-feira, 10 de outubro de 2008

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ARTIGO

Ao invés de aperto, crise pede mais gasto

SAMUEL BRITTAN
DO "FINANCIAL TIMES"

"Existem hoje muitas pessoas que desejam o bem de seus países e acreditam que a coisa mais útil que elas e seus vizinhos poderiam fazer para consertar a situação seria poupar mais do que costumam... Em determinadas circunstâncias, isso estaria perfeitamente certo, mas nas circunstâncias que vivemos é um erro. Suponham que todos nós deixássemos de gastar nossas rendas e decidíssemos poupá-las por inteiro.
O resultado é que todo mundo perderia o emprego. E não demoraria para que não restasse renda a gastar... Agora é hora de os governos locais se ocuparem de toda espécie de melhora sensata... Li alguns dias atrás sobre uma proposta para construir uma nova via, um bulevar largo, paralelo ao Strand, do lado sul do rio Tâmisa, unindo Westminster à City... Mas eu gostaria de fazer algo ainda maior. Por exemplo, por que não derrubar todo o sul de Londres, de Westminster a Greenwich, e caprichar no trabalho? Ao mesmo tempo, forneceríamos centenas de hectares de praças e avenidas, parques e espaços públicos... Seria melhor ver as pessoas ociosas e miseráveis, vivendo de salário-desemprego?" (De uma palestra de rádio proferida por John Maynard Keynes em 14 de janeiro de 1931, publicada em "Essays in Persuasion".)
Por que a quebra dos bancos e das instituições financeiras a eles associadas representa uma ameaça maior do que seria a quebra de outras grandes empresas, como a Ford ou a General Motors? Existem dois motivos principais. Primeiro, essas instituições oferecem o grosso da base monetária. A disposição de indivíduos e empresas a consumir depende de muitas coisas -renda e ativos de todos os tipos, financeiros e reais. Mas suas posições em dinheiro representam a primeira linha de defesa.
Caso a validade delas esteja em dúvida, as pessoas se sentem não apenas mais pobres como também ansiosas e desorientadas. Em tempos normais, elas sabem vagamente que os bancos não têm em seus caixas dinheiro suficiente para atender a um saque em massa de parte de seus depositantes, mas esse é o tipo de informação que encontra uso apenas em testes de conhecimento geral.
No entanto é uma informação que ganha imensa importância quando as manchetes estão repletas de bancos em crise, e pessoas muito sérias imaginam, não completamente como piada, se "debaixo do colchão" não seria um lugar melhor para guardar a poupança de recurso imediato.
O segundo é que seria possível imaginar um sistema sob o qual os poupadores emprestariam diretamente apenas recursos de curto prazo, a empresas e outras pessoas. Mas na verdade não é isso que acontece. Os poupadores depositam nos bancos fundos que podem ser sacados rapidamente. Estes na verdade criam o dinheiro que emprestam a terceiros.
Em tempos normais, o processo funciona por meio de um equilíbrio entre forças de mercado e a política do banco central. Mas quando os bancos têm medo de emprestar, os tempos não são normais, e corremos o risco não só de recessão mas de depressão. O primeiro problema é mais fácil de enfrentar que o segundo. Os irlandeses abriram o caminho ao garantir todos os depósitos bancários do país, como já o tinham feito ao rejeitar o completamente inútil Tratado de Lisboa. O programa britânico de 400 bilhões de libras (US$ 690 bilhões) anunciado nesta semana oferece virtualmente a mesma garantia. Mas por que apenas "virtualmente"?
Quanto ao segundo problema, existem muitas abordagens, entre as quais as participações do Estado no capital de bancos britânicos anunciadas nesta semana e, se necessário, estatização completa. Também existe toda espécie de precedente, do New Deal a Mussolini, quanto a agências estatais que concederiam empréstimos ou adquiririam companhias financeiras sólidas para ajudá-las a superar suas dificuldades temporárias. Essas agências persistiram por tempo demais e retiveram seus ativos corporativos por tempo demais. Qualquer instrumento humano pode sofrer abuso.
Já existem alertas de que esse tipo de solução servirá para alargar os déficits orçamentários e a dívida. Que seja. Máximas sobre dívidas que podem representar uma orientação prudente no caso de uma família também podem ser o auge da insensatez para um governo. Keynes, na citação acima, estava falando no início da Grande Depressão. Mas será que não podemos agir de maneira preventiva? Compreendo que as pessoas considerem psicologicamente difícil aceitar uma crise que pede por mais gastos, em lugar de um aperto nos cintos. Tivemos situação semelhante, em menor escala, nos Estados Unidos, quando o presidente John Kennedy disse "pergunte o que você pode fazer pelo seu país", e enfrentou dificuldades para conseguir a aprovação do Congresso a um pacote de corte de impostos.

Keynes x Friedman
Permitam-me encerrar em nota pessoal. Alguns amigos e colegas me perguntaram se não sou culpado de tentar destronar Keynes e substituí-lo por Friedman. Não é o caso. Quanto a muitas questões cruciais, esses dois pensadores estiveram juntos contra o rebanho financeiro. O mais importante é que quando os "keynesianos" britânicos tentaram usar a política fiscal e monetária sem considerar a inflação, e depois tentaram curar os problemas que causaram fazendo dos sindicatos agentes de controle de salários e das empresas agentes de controle de lucros, eu me separei deles.
Recentemente expressei apoio ao Banco da Inglaterra em sua aversão a cortar juros, contra meus instintos, quando estávamos diante de inflação crescente causada pelos preços da energia e das commodities.
Estes caíram de maneira acentuada por influência das forças recessivas em ação no mundo, e não podemos esperar, agora, pelo lento processo sob o qual essas forças se fariam exercer nos índices de preços ao consumidor. O corte de juros de 0,5% que o Banco da Inglaterra adotou em operação internacional coordenada precisa ser o primeiro de muitos, e eles devem vir rapidamente. É provável que seja necessário suplementá-los com pacote de estímulo fiscal.
A maioria das objeções acadêmicas a isso seriam superadas por um corte temporário e indireto de impostos que o ministro das Finanças britânico pode impor a qualquer momento usando seus poderes de regulamentação.


Tradução de PAULO MIGLIACCI


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