São Paulo, quinta-feira, 10 de novembro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Cúpula das Américas - um Post-Mortem

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

"Post-mortem "? Exagero, talvez. Mas a Quarta Cúpula das Américas, realizada há poucos dias em Mar del Plata, aponta para o esgotamento do processo iniciado em 1994, com a Primeira Cúpula, em Miami. Na época, o então presidente dos EUA, Bill Clinton, liderou o lançamento da Área de Livre Comércio das Américas (Alca).
Transcorridos mais de dez anos, depois de um sem-número de reuniões e negociações, a Alca não saiu do papel. Cresce a impressão de que tudo isso é uma forma cara e perigosa de perder tempo. Cara porque todo esse processo envolve gastos expressivos com reuniões, viagens, estudos, contratação de equipes técnicas e mobilização de recursos humanos dos governos e do setor privado. Perigosa porque sempre há o risco de que os nossos países sejam pressionados a aceitar a agenda desequilibrada e cerceadora da autonomia nacional que os EUA insistem em aplicar nas suas negociações comerciais com os demais países do Hemisfério. Vários já caíram nessa armadilha.
Reservo-me o direito, leitor, de fazer as afirmações (polêmicas, reconheço) do parágrafo anterior sem desenvolvê-las hoje. Já escrevi muito sobre o assunto (talvez demais) em trabalhos acadêmicos e artigos de jornal. Remeto os interessados aos dois capítulos finais do livro citado no pé biográfico da coluna.
A Alca foi o tema mais polêmico em Mar del Plata. Os 34 países americanos participantes (todos exceto Cuba), representados por seus chefes de Estado e de governo, terminaram concordando em discordar...
A Declaração da Cúpula justapôs duas posições divergentes -sem identificar que países apóiam que parágrafos. Sabe-se, entretanto, que a contraposição se deu entre o Mercosul e a Venezuela, de um lado, e os EUA e demais países, de outro. O grupo liderado por Washington quer retomar as negociações da Alca no primeiro semestre de 2006. Já a Venezuela e o Mercosul entendem que não estão presentes as condições para um acordo equilibrado e eqüitativo. O presidente venezuelano, Hugo Chávez, foi mais longe e declarou que Mar del Plata seria o túmulo da Alca.
A Alca não morreu, mas está correndo certo risco de vida. Com seu desaparecimento, as próprias Cúpulas das Américas perderiam muito do seu sentido.
O que aconteceu, afinal? Por que o ambicioso projeto de integração concebido pelos EUA está ameaçando naufragar?
São vários os motivos. Primeiro, a Alca representa o aprofundamento das políticas de liberalização, desregulamentação e desnacionalização patrocinadas por Washington desde o final dos anos 80. Ora, em muitos países da região, o que se viu foi o fracasso dos governos apoiados pelos EUA. Aumentou a desconfiança quanto à sabedoria das recomendações dos norte-americanos e de seus numerosos asseclas locais.
O segundo motivo é que mesmo nos EUA não há consenso quanto à Alca e à liberalização comercial. São muito poderosos os lobbies que lutam por proteção contra a concorrência estrangeira. Isso sempre existiu, mas vem se tornando mais explícito nos anos recentes. O resultado é que as ofertas americanas de "livre comércio" estão repletas de ressalvas e exceções. Essas exceções incluem todos ou quase todos os produtos e temas prioritários para países como o Brasil.
Finalmente, não podemos esquecer a inestimável contribuição do companheiro Bush. Graças a seu unilateralismo primário, o prestígio dos EUA vem decaindo em todo o mundo e até mesmo na América Latina, região em que a influência de Washington sempre foi muito grande. No tempo de Clinton, os EUA se valiam de uma combinação habilidosa de "hard" e "soft power", ou seja, força militar bruta associada a persuasão, sedução, diplomacia, sutileza e hipocrisia.
Bem. A "soft power" escapa do radar do companheiro Bush. Ele prefere usar a "hard power" -e mal. Criou-se assim um ambiente propício para desarticular ou pelo menos paralisar iniciativas perigosas como a Alca. Os partidários tupiniquins do projeto americano estão desorientados e horrorizados. E nada podem fazer.
Por isso, volto a proclamar: Viva o companheiro Bush!


Paulo Nogueira Batista Jr., 50, economista e professor da FGV- EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "O Brasil e a Economia Internacional: Recuperação e Defesa da Autonomia Nacional" (Campus/Elsevier, 2005).
E-mail - pnbjr@attglobal.net


Texto Anterior: Câmbio e juro fazem indústria recuar no 3º tri
Próximo Texto: Tendências internacionais - Barril de pólvora: Petrolíferas defendem lucro recorde
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.