|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OPINIÃO
Mercados ganham, a política perde
CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A MADRI
O BIS (Banco de Compensações Internacionais, uma espécie de
banco central dos bancos centrais) divulgou ontem o seu relatório sobre essa opaca atividade financeira batizada de derivativos OTC ("over-the-counter", não necessariamente
registrados em algum mecanismo de regulação/supervisão do
sistema financeiro).
Derivativos são, para simplificar, apostas em determinados
ativos, como valor de uma moeda, juros, commodities etc.
Ao terminar 2009, o total
desse tipo de apostas subira 2%
sobre 2008, para chegar a
US$ 650 trilhões. Sim, trilhões.
A riqueza tangível do mundo
(bens e serviços) era então de
cerca de US$ 70 trilhões, pouco
mais de um décimo do valor
(suposto) de papéis intangíveis.
Alguma surpresa com o fato
de que os mercados financeiros
em que se negociam os OTCs e
tantos outros instrumentos,
muitos igualmente opacos, estejam dando uma formidável
surra nos governos?
O formidável pacote de suporte ao euro e aos países que o
utilizam, divulgado na madrugada de ontem, é apenas a mais
recente evidência de que há
descompassos na economia
mundial que ou são corrigidos
ou manterão o planeta com o
coração na mão por muitos e
muitos anos.
Como disse no domingo a "El
País" Felipe González, ex-presidente do governo espanhol,
hoje coordenador do chamado
"grupo de sábios" que busca desenhar a Europa do futuro, "se
a economia mundial cresce 4%,
o comércio mundial, 4,5%, e os
movimentos de capital, 60%
acumulados, algo não funciona
bem" (os números referem-se a
1999; de lá para cá, a relação só
piorou).
Tanto não funciona que, há
apenas um ano, o G20, o clube
das 20 maiores economias
mundiais, anunciava em Londres, solenemente, que mobilizaria US$ 1,1 trilhão para evitar
uma colapso econômico, provocado, em grande medida, pelos OTCs e seus parentes próximos ou não tão próximos.
Agora, vêm a União Europeia
e os bancos centrais do mundo
rico anunciar outros US$ 750
bilhões. Sem eles, diz o ministro belga de Finanças, Didier
Reynders, haveria "outro Lehman Brothers" (alusão à quebra dessa instituição norte-americana que precipitou o colapso de 2008).
Parece óbvio que o mundo
não pode funcionar de pacote
em pacote.
O primeiro descompasso está na velocidade de ação: os
operadores de mercado tomam
suas decisões em segundos; os
governos forçosamente tardam
tempo bem maior para agir ou
reagir.
O cálculo das autoridades europeias era o de que a recuperação da economia mundial ajudaria no crescimento de cada
país de tal forma que poderiam
reduzir seus deficit gradualmente e, assim, evitar o calote.
Aliás, grande parte do deficit
foi provocado exatamente pela
necessidade de socorrer bancos
quebrados, entre outras áreas
do setor privado. Ou seja, não
se trata, desta vez, de um deficit
gerado pela compulsão dos governantes, antiga como o mundo, a gastar demais.
A Espanha, por exemplo, tinha em 2007, antes, portanto,
do Lehman Brothers, um saldo
nas suas contas: arrecadava o
equivalente a 41,1% de seu PIB
e gastava apenas 39,2%. "Lucro", portanto, de 1,9 ponto
percentual.
A necessária lentidão para
operar a redução dos deficit
acabou atropelada pelo que o
ministro das Finanças da
Suécia, Anders Borg, classificou de "lobos" do mercado financeiro, atacando um país
atrás do outro.
Racionalidade
Parte desses ataques tem de
fato racionalidade econômica.
No caso da Grécia, houve até
fraude nas estatísticas (estimulada, aliás, por um dos "lobos").
Mas há neles uma evidência
do segundo descompasso: governos têm que seguir regras,
inclusive a de submeter decisões como a de lançar o pacote
desta segunda-feira a seus Parlamentos. A parte mais aventureira dos mercados financeiros,
ao contrário, foi liberada da regulação.
De novo, Felipe González: "A
maior contradição que estamos
vivendo é que a operação de
resgate das entidades financeiras privadas, provocada pelos
seus próprios erros, fez-se à
custa dos contribuintes e desequilibrou as contas públicas. Os
operadores, agora, denunciam
o desequilíbrio das contas públicas (...) para desestabilizar os
mercados".
Esses descompassos foram
apenas momentaneamente
congelados pelo pacote europeu. Ainda haverá mais capítulos no que o presidente Barack
Obama chamou de guerra com
Wall Street.
Texto Anterior: Economistas duvidam da eficácia do plano Próximo Texto: Artigo: UE ganha tempo, mas verdadeiro teste está por vir Índice
|