São Paulo, sexta-feira, 11 de agosto de 2006

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LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS

A doença chama-se hemocromatose

A hemocromatose só se manifesta após muitos anos, o que também ocorre com a economia com muitos dólares

O EXCESSO de dólares na economia brasileira, e a conseqüente valorização do real, é hoje uma realidade que só os verdadeiramente cegos não conseguem ver. Tenho voltado a esse ponto com uma recorrência que pode até irritar alguns de meus leitores. Mas não posso deixar de aprofundar esse fenômeno que está mudando de forma radical a economia brasileira.
Utilizar corretamente esse excesso estrutural de moeda estrangeira para trazer de volta um período saudável de crescimento acelerado e sustentável é uma obrigação do próximo governo, a ser eleito neste ano.
Os economistas chamam o que está acontecendo com o real de "doença holandesa". Essa denominação foi criada a partir do que ocorreu na década de 60 do século passado na economia desse pequeno país europeu. Há algum tempo tenho procurado encontrar uma imagem mais precisa para esse fenômeno que ocorre hoje no Brasil, no Chile, na Rússia e em países exportadores de petróleo. A China, que também tem o mesmo problema, é um caso a parte, em razão da política de câmbio fixo adotada na economia, que tem impedido a valorização da moeda.
Encontrei no campo da medicina uma doença que representa de forma mais correta os problemas provocados pelo excesso de dólares. Ela se chama hemocromatose e é a patologia que ocorre em um organismo que absorve muito mais ferro do que precisa para viver normalmente. O excesso absorvido fica depositado em órgãos como o coração, os rins e, principalmente, o fígado. Com o passar do tempo, esses órgãos vão ficando "enferrujados", e seu funcionamento, cada vez mais prejudicado. No limite, provocam a morte do paciente. Mas a doença atinge essa situação limite somente depois de muitos anos, décadas seria melhor dizer, sem o tratamento necessário.
Aliás, o tratamento é muito simples: uma sangria terapêutica de tempos em tempos. Duas características da hemocromatose me levaram a associá-la ao excesso de dólares em uma economia como a brasileira. Em primeiro lugar, porque, tal como ferro no corpo humano, a disponibilidade de dólares é evidência de saúde no balanço de pagamentos, fator positivo para o tecido econômico de um país.
Por outro lado, a falta de ferro produz a anemia nos seres vivos, e a de dólares, crises cambiais sérias e atrofia de crescimento. Em segundo lugar, porque é uma doença cujos sintomas só se manifestam depois de muitos anos de convivência com essa disfunção, o que também ocorre com as economias com excesso de dólares, caso a política econômica não seja conduzida adequadamente na presença desse fenômeno.
Os primeiros sintomas criados por uma moeda excessivamente valorizada já começam a aparecer no Brasil. Se olharmos a taxa de crescimento dos setores produtivos mais afetados pela nossa moeda valorizada e compará-la com a de outros, principalmente os ligados à extração mineral, esse fenômeno fica evidente. A racionalidade de empresas e consumidores está direcionando para as importações um volume crescente de compras que eram realizadas no mercado interno. Por isso, as importações de certos itens, como bens de consumo e componentes industriais, estão crescendo a taxas elevadas. Além disso, na tentativa de competir com as empresas do exterior, os produtores nacionais estão abaixando seus preços e, por isso, reduzindo a rentabilidade de suas operações. Esse fenômeno ajuda no combate à inflação, mas, quando combinado com baixo crescimento, acaba por desestimular os investimentos para aumento de capacidade produtiva.
Ainda na tentativa de compensar os preços mais baixos das importações, as empresas brasileiras estão aumentando a rotatividade de seus funcionários, na busca de compensar com salários mais baixos a perda de rentabilidade em suas operações.
Essa dinâmica também já pode ser vista nas estatísticas do mercado de trabalho. Dou um exemplo claro disso: até julho de 2006, de um total de 76 mil empregos criados na área da Fiesp, 72,2 mil ocorreram no complexo do açúcar e do álcool. O restante da indústria praticamente não criou nenhuma vaga nova. A explicação para isso é simples: o setor sucroalcooleiro é um dos poucos protegidos do câmbio valorizado, pois a cotação do álcool tem seguido de perto o aumento contínuo dos preços do petróleo nos mercados internacionais.
Esse comportamento é grave, na medida em que os setores mais afetados pela valorização cambial e pelo baixo crescimento da economia são justamente os que mais empregam.


LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS, 63, engenheiro e economista, é economista-chefe da Quest Investimentos. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo FHC).

lcmb2@terra.com.br


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