São Paulo, quinta, 12 de março de 1998

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Hora de rediscutir os negócios da privatização

ALOYSIO BIONDI
Pelos cálculos do governo, os grupos empresariais que ganharam o direito de explorar rodovias, da União e dos Estados, deveriam passar a ter lucros somente depois de três anos, no mínimo. No entanto, sabe-se agora que eles lucraram já no primeiro ano, segundo balanços divulgados na semana passada. Conclusão: confirma-se mais uma vez que alguma coisa está errada, e muito errada, nos cálculos que o governo federal e os Estados têm feito para fixar tanto o preço da venda de suas estatais quanto para a concessão do direito de explorar pedágio em rodovias, serviços portuários, ferrovias etc.
Para avaliar as dimensões dessa distorção, vale a pena dissecar o resultado da concorrência aberta pelo governo Mário Covas para "privatização" do sistema Anchieta-Imigrantes, anunciado neste começo de semana. Antes de mais nada, no que consistem essas concessões para exploração de rodovias? Com a privatização, os concessionários ficam responsáveis pela execução de obras de ampliação e conservação -e, em troca, recebem o dinheiro do pedágio (e várias outras receitas), como pagamento pelos investimentos feitos e posteriores serviços de manutenção. No caso da Imigrantes-Anchieta, o grupo vencedor assumiu o compromisso de gastar R$ 770 milhões para duplicar a rodovia, construindo nova pista destinada a unir capital e litoral. Além disso, ofereceu um lance de R$ 87 milhões para ter o direito de ficar com o dinheiro do pedágio e outras receitas, isto é, ter a "concessão" da exploração da rodovia (a pista nova e as antigas, bem entendido). Pode parecer vantajoso para o Estado. No entanto, algumas continhas simples mostram outra realidade.
A perder de vista
Detalhe que a opinião pública geralmente ignora: os "lances" para a privatização de rodovias, ferrovias etc. não são pagos à vista -não são desembolsados pelos grupos vencedores- e, portanto, não entram nos cofres da União e dos Estados, reduzindo a sua dívida, como a equipe FHC afirma frequentemente.
No exemplo da Imigrantes (e o esquema é similar para essas concessões), os R$ 87 milhões serão pagos em nada menos do que 20 anos, em 240 parcelas mensais. Valor dessas parcelas? Míseros R$ 340 mil por mês para o governo paulista, tanto quanto o preço de dois apartamentos de classe média... Haveria uma "entrada", de uns R$ 10 milhões (ou o equivalente a menos de cem metros, menos de um décimo de quilômetro do metrô). Mas mesmo ela é parcelada em 12 prestações de R$ 800 mil...
Detalhe final: assinado o contrato de "privatização", antes mesmo de começar as obras, todo o dinheiro do pedágio das rodovias já passa a ir para os cofres das empresas vencedoras -que lucram, assim, sem nada desembolsar, com os trechos anteriormente construídos pelo governo. Isto é, com dinheiro do contribuinte.
Lucro gigantesco
E as receitas? No caso da Imigrantes, calculou-se oficialmente que, em 20 anos, somente a cobrança do pedágio renderá R$ 4,4 bilhões -ou R$ 220 milhões por ano. Vale dizer: se gastar efetivamente os R$ 770 milhões nas obras previstas, os concessionários recuperariam o dinheiro em três anos -e teriam lucros, a partir daqueles R$ 220 milhões por ano, durante mais 16 anos e meio. Uma fábula, e isto se os cálculos oficiais estivessem corretos. Mas a realidade está mostrando que os cálculos estão errados, isto é, as previsões de receitas têm sido subestimadas e na prática as concessões rendem mais.
Aceitando-se que a sociedade é favorável à política de privatização, ainda assim não se pode fechar os olhos às distorções patentes do processo, que lesam os contribuintes. Impõe-se uma revisão, pelas Assembléias Legislativas e Congresso Nacional.
Caso Light
Em sua coluna de terça-feira (10/03), o insuspeito Luís Nassif confirma algumas distorções frequentemente apontadas por esta coluna, presentes na política de privatização e na política econômica do governo FHC.
A Light, narra Nassif, está importando maciçamente (medidores de consumo), exatamente como ocorre também na área de telecomunicações. Vale dizer: ao contrário do que proclama o governo, os investimentos gigantescos nessas áreas não estão aumentando a produção, nem criando empregos, dentro do país. Ao contrário. Aumentam a "torra de dólares", com importações, e as ameaças de desvalorização do real. Nassif dá a entender, ainda, que a Light está "superfaturando" as importações, práticas que permite a remessa disfarçada de lucros para as matrizes ou empresas do exterior -e cria uma "sangria" de dólares extra. Ah, sim: sem o "superfaturamento", o lucro verdadeiro da Light seria ainda maior do que o anunciado.


Aloysio Biondi, 60, é jornalista econômico. Foi editor de Economia da Folha. É diretor-geral do grupo Visão. Escreve às quintas-feiras no caderno Dinheiro.



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