São Paulo, domingo, 12 de agosto de 2001

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

O cenário final do governo FHC

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

Os xerifes da moeda dos governos FHC permitiram duas "bolhas especulativas", abrindo as comportas ao capital financeiro internacional para financiar déficits de transações correntes de mais de US$ 200 bilhões acumulados no período. A primeira bolha ajudou a tornar o real forte, induzindo o setor privado a endividar-se fortemente em dólares. Terminou explodindo depois da reeleição de FHC em 1998, levando o país às portas do FMI. A segunda bolha foi de investimento direto, durou pouco mais de três anos e destinou-se à privatização e à desnacionalização da economia. O sonho do governo de "um choque de capitalismo global" que deveria tornar-nos competitivos e estáveis acabou. Agora só nos resta enfrentar a dura realidade: a crise internacional que se alastra e as nossas próprias crises energética e cambial.
O "real" flutuante foi ladeira abaixo, desde que as necessidades de financiamento externo alcançaram limites impraticáveis. Em junho deste ano, o Banco Central resolveu intervir no mercado de câmbio e tentar segurar a taxa em torno de R$ 2,50. Não podendo fechar as contas externas, as nossas "autoridades monetárias" foram de novo ao FMI, que as autorizou a rebaixar as nossas reservas líquidas para US$ 20 bilhões. Essa cifra corresponde apenas a quatro meses de importações, ferindo o princípio prudencial de reservas, que eram de US$ 38 bilhões quando o governo assumiu, e cobriam mais de um ano de importações. A estimativa da taxa de câmbio do acordo original, de R$ 1,70 para fins de 2001, subirá para quanto? Não se sabe, mas o City, um dos credores que participam da "câmara de compensação" em dólares no interbancário privado, aposta em R$ 2,70.
O erro de R$ 1,00 a mais nas estimativas de desvalorização e a alta na taxa de juros custaram um aumento considerável da dívida pública interna, que, segundo as estimativas do FMI, deverá alcançar R$ 700 bilhões no fim do ano. Para quem começou o governo com apenas R$ 60 bilhões, devemos confessar que é uma "performance magnífica" para celebrar os sete anos da equipe FHC-Malan. Para pagar apenas uma parte dos juros, estaremos obrigados a fazer uma "poupança fiscal primária" compulsória de 3,5% do PIB, cifra para matar de inveja os países devedores em dólar e de raiva a população trabalhadora, sujeita a um arrocho fiscal e salarial sem precedentes.
O nosso chefe de Estado deu várias entrevistas "exemplares" sobre a segunda ida ao Fundo em menos de dois anos. A melhor foi no Peru, onde declarou que "só países com economia sólida obtêm o aval do FMI para conseguir novos recursos". Seu candidato "in pectore" Pedro Malan corroborou a farsa ao declarar, na terça-feira passada, que "a comunidade financeira internacional depositou mais uma vez confiança no Brasil".
Agora que a "comunidade financeira" não está nem aí para socorrer os "mercados submergentes", o nosso ministro teve de ir a Washington para renegociar os restos do falecido acordo de 1998 e assinar um "cheque especial" que o Fundo avalizou em US$ 12,5 bilhões e lhe permite ir "flexibilizando" as reservas até o fim do governo. Trata-se de uma linha de reforço para casos graves de insuficiência na conta de capital do balanço de pagamentos, em que o país tem direito de obter um socorro de até 400% do valor da sua cota de acionista no FMI (tentando evitar a moratória ou o controle cambial rigoroso). A Argentina, em situação pior, já mandou seu delegado ao Fundo para reivindicar "tratamento equânime".
Os diretores do FMI, mesmo em férias, resolveram ser "generosos" à custa das reservas brasileiras. O "empréstimo ponte" deve ser pago com juros crescentes depois da assinatura do acordo, em setembro deste ano, vencendo em dezembro de 2002. O empréstimo é insuficiente para fechar o balanço de pagamentos no próximo ano e meio se a crise mundial se agravar e o investimento intercompanhias diminuir. O mercado e as agências internacionais de risco sabem disso.
Vários comentaristas louvaram a concessão especial e rápida para salvar a economia brasileira do "contágio argentino". Alguns poucos bobos da corte a consideraram um prêmio pelo bom comportamento dos ajustes fiscais sucessivos que, no primeiro semestre deste ano, já haviam ultrapassado as metas previstas no acordo inicial. Outros lembraram que isso nunca tinha acontecido na história das relações do FMI com o Brasil. Esqueceram-se de que um caso semelhante ocorreu em 1962, quando Jango assumiu a Presidência da República e era embaixador em Washington o dr. Roberto Campos. O empréstimo de então serviu para ajudar a atravessar a crise que desembocou no golpe de 1964.
Um novo golpe não é uma situação previsível no futuro próximo, qualquer que seja o candidato eleito. Aparentemente não há nada no ar além dos aviões de carreira. A negociação com a Embraer para reaparelhar a Força Aérea Brasileira não é para bombardear o Palácio do Planalto nem para declarar guerra à Argentina. Seria destinada apenas a prover de tecnologia e produção própria os aviões que devem vigiar a nossa longa e desguarnecida fronteira da Amazônia. A base de Alcântara é outra negociação. Ambas estão em discussão nas comissões de Relações Exteriores da Câmara e do Senado, mas as decisões geopolíticas ocorrem em um nível mais alto e secreto do que as decisões da economia. Neste plano, a "dolarização" e o "fast track" da Alca estão temporariamente suspensos. "Prudentia fortuna juvet."
A crise terminal do governo FHC pode proporcionar energia positiva suficiente para tapar os "buracos negros" do universo em expansão do capital financeiro virtual e finalmente demonstrar que outro Brasil é possível.


Maria da Conceição Tavares, 70, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).

Internet:
www.abordo.com.br/mctavares

E-mail -
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