São Paulo, domingo, 12 de setembro de 2004

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LUÍS NASSIF

O jurista e o embaixador

O mundo dos construtores da pátria é tribo de poucas pessoas compartilhando sentimentos grandiosos, temas incompreensíveis para o comum dos mortais, como construção de nacionalidade, formação econômica de nações.
Naquele ano de 1994, olhando a pilha de livros à sua frente, o embaixador estava mais só que de costume. Separara dois montes de livros, os preferidos, com dedicatória dos autores, a maior parte dos quais construtores de país como ele, já mortos. E uma segunda pilha, de livros irrelevantes, para que fossem arrancadas as páginas com dedicatória e encaminhados a um sebo. O auxiliar inverteu as pilhas.
O tempo, implacável, já levou a maior parte dos seus contemporâneos. Agora, o descuido do auxiliar leva mais um pouco, com as folhas arrancadas e picadas no triturador de papéis. O episódio o torna mais ensimesmado, mais melancólico. Começa a desfilar as lembranças, como tentando preservar o que o engano do assessor destruiu. E as lembranças chegam a Francisco Clementino de San Thiago Dantas, que ele, Walther Moreira Salles, conheceu em 1945, no Rio de Janeiro. Neste mês se completam 40 anos da sua morte. Naqueles dias, completavam 30 anos.
San Thiago já era o fenômeno, o jovem professor da Universidade do Brasil, um ano mais velho que Walther, que arrastava multidões de alunos às suas aulas de direito civil. Tinham, em comum, a passagem pelo integralismo. De lá, San Thiago mantivera a relação de amizade eterna com Antonio Galotti, presidente da Light, e com o ex-ministro da Justiça Carlos Medeiros.
Era um "causer" insuperável. Preparava a conversa de cada noite com o mesmo apuro com que preparava aulas. E o tema podia ser culinária, política internacional, moda ou direito.
O embaixador era o visionário que farejava as novas formas de negócio criadas pela expansão do capitalismo no pós-guerra; San Thiago, o advogado que ajudava a formatar juridicamente as novas operações. Tantas eram as encomendas que o embaixador acabou convidando-o a se mudar para o prédio do banco. Lá, constituiu uma banca brilhante, com Carlos Medeiros, Miguel Lins, Jorge Serpa e Plínio Doyle.
Em troca, o embaixador abriu para ele um mundo jamais imaginado. Mudou-se da pequena casa em Ipanema para uma mansão, com enorme biblioteca no andar superior. Por meio do grupo, conheceu e tornou-se advogado de grandes empresas, como a Monte Cassini, dos Safdié, Champignon, Snia-Viscosa.
Quando Walther foi nomeado embaixador em Washington, em 1952, convidou San Thiago para diretor do banco. Excelente analista de situações políticas e financeiras, aprendia tudo com uma facilidade espantosa.
As recordações jorram, passam pelo encontro de ambos com Vargas, pelas ambições políticas e sociais do jovem advogado, os entreveros com Magalhães Pinto, a compra do "Jornal do Commercio", as dificuldades com o PTB, no qual pretendia implantar a chamada "esquerda positiva".
Os pensamentos voam e pousam em um dia qualquer de 1964, em Paris, no telefonema que lhe deu San Thiago, convidando-o para um almoço no restaurante La Perousse. O embaixador estranhou. Era um local agradável e discreto, mais adequado a encontros íntimos. Ao ver o amigo, entendeu a razão. Tomado pelo câncer, a caminho de Lilly, a voz de San Thiago era quase inaudível.
Terminado o almoço, convidou-o a visitar a catedral de Saint Demi. Foi um passeio longo. Com sua erudição, parava em frente a cada túmulo e dissertava sobre o reino e sobre fatos relevantes da época. No meio da visita, chegou um cortejo fúnebre. San Thiago fez questão de assistir à cerimônia, sem nenhum comentário triste ou dramático. Ao contrário, chamava a atenção para diversos aspectos da cerimônia.
Manteve essa coragem indômita, sofrendo possivelmente horrores, até poucos dias antes da morte, quando Walther o visitou pela última vez no hospital Samaritano.
Com as lembranças registradas, o embaixador acalma o espírito. Ao menos aquelas recordações estavam preservadas do triturador de papéis. E-mail -
Luisnassif@uol.com.br

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