São Paulo, segunda-feira, 13 de março de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA

Giddens, Lula e a ortodoxia convencional

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA

Comparando os elogios com que economistas e líderes políticos americanos e europeus brindaram Menem e sua política econômica e hoje brindam Lula e seus economistas com a ausência de elogios correspondentes para as autoridades dos países asiáticos dinâmicos, formulei uma medida de qualidade tão simples quanto paradoxal, da qualidade das políticas econômicas de um país em desenvolvimento: quanto mais elogios a política econômica de um país de desenvolvimento médio receber do Norte, pior será ela para o próprio país.
A lógica por trás dessa regra é simples. A partir de suas agências em Washington, os países ricos formularam uma série de diagnósticos e de políticas-padrão destinadas a aconselhar os países de desenvolvimento médio, como o Brasil. A "ortodoxia convencional" resultante não promove o desenvolvimento desses países, mas neutraliza sua capacidade competitiva, em princípio alta, devido a sua mão-de-obra barata e a sua capacidade de importar tecnologia.
Dado o pressuposto da ortodoxia convencional de que o desenvolvimento é uma competição entre os países médios para conseguir poupança externa, a recomendação central é que lutem por ela e, portanto, endividem-se. Ganharão a competição os países que mais estritamente seguirem as recomendações e, assim, mais financiamentos e investimentos diretos receberem. Considerando, porém, que poupança externa é sinônimo de déficit em conta corrente, a experiência internacional mostra exatamente o oposto: crescem os países que não seguem tal conselho e têm equilíbrio ou superávits em conta corrente. Mas isso não importa para a ortodoxia convencional, cuja lógica se fecha com o fato de que, uma vez aceito o conselho, os países ficarão dependentes dos credores para rolar suas dívidas e obrigados à prática do "confidence building" -ou seja, a serem ainda mais fiéis às recomendações e às pressões vindas do Norte.
Já não me impressionam mais os insistentes elogios à política econômica do governo Lula: eles apenas confirmam minha paradoxal medida. Quando, porém, um grande intelectual, como é Anthony Giddens, decide fazer coro, não posso deixar em branco. Comungo com ele uma perspectiva moderadamente de esquerda, que celebrizou com o nome de Terceira Via, e moderadamente nacionalista, na medida em que ele, como cidadão britânico, e eu, como cidadão brasileiro, não obstante comprometidos com a solidariedade internacional, vejamos nossos países e o mundo a partir da perspectiva e dos interesses respectivamente do Brasil e do Reino Unido.
Giddens elogia o governo Lula em longa entrevista a esta Folha (5 de março), na qual, entre outras coisas, afirma: "Em qualquer governo de centro-esquerda, haverá os que dirão que ele não é suficientemente de esquerda, que deveria gastar mais com o social. Penso que a maioria das estratégias de Lula é correta. Ele teve de ser cauteloso do ponto de vista fiscal, por causa da enorme dívida brasileira. Você tem que saná-la, do contrário gastará ainda mais com pagamento de juros".
Meu caro Giddens, em primeiro lugar, o governo Lula não é um governo de esquerda. Transfere dos pobres para os ricos (mais especificamente para os rentistas) cerca de 6% do PIB por meio do pagamento de juros escorchantes decididos pelo Banco Central (estou supondo que 2% seriam necessários, dada a dívida pública). Em segundo lugar, Lula não controlou o gasto público e só tem aumentado o superávit primário graças ao aumento da carga tributária. Terceiro, Lula não segurou o gasto social: restringiu o gasto em educação e saúde, mas aumentou o gasto assistencialista.
Além de não ser de esquerda, o governo Lula contém um viés antinacional. O Brasil não está incorrendo em déficit em conta corrente dadas as depreciações cambiais de 1999/2002 e a forte melhoria das relações de troca do país. Mas o governo, paralisado pela taxa de juros que pratica, está deixando que a taxa de câmbio se valorize de forma irresponsável. Em dois ou três anos, esse populismo cambial levará o país a novos problemas de balanço de pagamentos.
Nas duas vezes em que estive em Oxford, fiquei impressionado com o nacionalismo inglês: um nacionalismo civilizado, social-liberal, adotado por uma nação que sabe o que é e o que não é conveniente para si própria. No Brasil, isso não existe: nossas elites são dependentes; falta hoje à nossa nação a necessária solidariedade e determinação; e o governo Lula, com a sua aceitação generalizada da ortodoxia convencional, é mais uma triste expressão desses fatos. A fim de alcançar taxas razoáveis de desenvolvimento econômico, o Brasil precisa de um controle muito mais forte de sua despesa pública e de uma estratégia para escapar da armadilha de alta taxa de juros e baixa taxa de câmbio.


Luiz Carlos Bresser-Pereira, 71, professor da Fundação Getúlio Vargas, ex-ministro da Fazenda, da Reforma do Estado, e da Ciência e Tecnologia, é autor de "Desenvolvimento e Crise no Brasil: 1930-2002".
Internet: www.bresserpereira.org.br
E-mail -
lcbresser@uol.com.br


Texto Anterior: CET usa carros de terceiros com placas de fora
Próximo Texto: FOLHAINVEST
Fator família: Empresas de consumo têm cenário positivo

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.