São Paulo, segunda-feira, 13 de outubro de 2008

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ARTIGOS

Crise no mercado financeiro e recuperação da confiança

Dada a reação pronta e geralmente competente dos governos de todos os países, que compreenderam a gravidade do problema, não há razão para pessimismo

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA
COLUNISTA DA FOLHA

A crise financeira que assola o mundo é grave. Nada lhe é comparável desde 1929. É uma profunda crise de confiança decorrente de uma cadeia de empréstimos originalmente imobiliários baseados em devedores insolventes que, ao levar os agentes econômicos a preferirem a liquidez e assim liquidarem seus créditos, está levando bancos e outras empresas financeiras à situação de quebra mesmo que elas próprias estejam solventes. Entretanto, dada a reação pronta e geralmente competente dos governos de todos os países, que compreenderam a gravidade do problema e pouco hesitaram antes de tomar medidas para aumentar a solvência e garantir a liquidez dos mercados, não há razão para pessimismo. Estou seguro de que em breve a razão voltará aos mercados, as Bolsas recuperarão parte de suas perdas, as taxas cambiais voltarão a se estabilizar, e a recessão inevitável não terá nada de parecido com a crise de 1929.
Há uma série de fatos que hoje estão claros a respeito desta crise financeira. Primeiro, sabemos que é uma crise bancária que ocorre no centro do capitalismo, não é uma crise de balanço de pagamentos comuns entre os países em desenvolvimento que tentavam até os anos 1990 crescer com poupança externa, ou seja, com déficit em conta corrente e endividamento externo. Os grandes déficits em conta corrente que marcaram a economia americana nesta década combinados com grandes déficits públicos não são, porém, estranhos à crise bancária. A falta de confiança não é apenas nos bancos e no mercado, é também na economia americana como um todo.
Segundo, sabemos que a causa direta da crise foi a concessão de empréstimos hipotecários de forma irresponsável, para credores que não tinham capacidade de pagar ou que não a teriam a partir do momento em que a taxa de juros começasse a subir. E sabemos também que esse fato não teria sido tão grave se os agentes financeiros não houvessem recorrido a irresponsáveis "inovações financeiras" para securitizar os títulos podres transformando-os em títulos AAA por obra e graça não do Espírito Santo, mas de agências de risco interessadas em agradar seus clientes.
Terceiro, sabemos que tudo isso pode ocorrer porque os sistemas financeiros nacionais foram sistematicamente desregulados desde que, em meados dos anos 1970, começou a se formar a onda ideológica neoliberal ou fundamentalista de mercado. Para ela, os mercados são sempre eficientes, ou, pelo menos, mais eficientes do que qualquer intervenção corretiva do Estado e, portanto, podem ser auto-regulados. Para essa ideologia, que desde o governo Reagan se transformou no instrumento do "soft power" americano, esse era o sistema econômico mais eficiente, único caminho para os demais países dado que as alternativas seriam formas de "socialismo social democrata" europeu, de "populismo" no terceiro mundo e de "estatismo disfarçado" na Rússia e na China, que seriam muito inferiores.
Quarto, sabemos que essa ideologia ultraliberal era legitimada nos Estados Unidos pela teoria econômica neoclássica, uma escola de pensamento que foi dominante entre 1870 e 1930, então entrou em crise e foi substituída pela teoria macroeconômica keynesiana, que se tornou dominante nas universidades até meados dos anos 1970, e voltou à condição dominante desde então por razões essencialmente ideológicas.
Economistas como Milton Friedman, James Buchanam, Mancur Olson, Robert Lucas, Kydland e Prescott apontaram sua armas contra o Estado e se encarregaram de demonstrar matematicamente, "cientificamente", com o auxílio dos pressupostos do Homo economicus, das "expectativas racionais" e da "escolha racional" que o credo neoliberal era correto.
Quinto, sabemos que esse tipo de teoria econômica não foi utilizado tanto pelos formuladores de política econômica nos governos quanto pelos analistas de macroeconomia nas empresas e nos jornais e publicações especializadas.
Não foram utilizados porque a pressuposição neoclássica de mercados eficientes dispensa qualquer política econômica a não ser a de ajuste fiscal; o resto deve ser liberalizado, desregulado, já que os mercados seriam auto-regulados. Como os governos e os analistas precisavam orientar sua política monetária, continuaram a usar o instrumental keynesiano de forma pragmática. Os experimentos macroeconômicos neoclássicos foram reservados para os países em desenvolvimento. Como, entretanto, os países ricos liderados pelos Estados Unidos não escaparam da prescrição desreguladora agiram como o escorpião que morde sua própria cauda.
Sexto, agora, quando vemos o Estado surgir em cada país como a única tábua de salvação, fica evidente o absurdo da oposição entre mercado e Estado proposta por neoliberais e neoclássicos. Um liberal pode opor coordenação do mercado à do Estado, mas não pode se colocar, como os liberais se colocaram, contra o Estado, buscando diminuí-lo. O Estado é muito maior do que o mercado; é o sistema constitucional-legal e a organização que a garante; é o instrumento por excelência de ação coletiva da nação. Cabe ao Estado regular e garantir o mercado e, como vemos agora, servir de emprestador de última instância.
Tudo isso está muito claro. O que não está claro é por que os mercados estão resistindo a recuperar a confiança apesar das medidas fortes que os governos estão tomando. Não tenho resposta segura para essa questão, mas creio que dois fatores contribuem para a profundidade da desconfiança: de um lado, o enfraquecimento da hegemonia americana nos anos 2000, não apenas devido aos déficits gêmeos, mas também à Guerra do Iraque, aos abusos contra os direitos humanos e à instrumentação da democracia como forma de dominação. De outro, um erro grave e pontual cometido pelo Tesouro americano: não ter salvo o Lehman Brothers. Bancos grandes não podem ir à falência; o risco de crise sistêmica é muito grande.
Foi a partir dessa decisão que o quadro financeiro mundial entrou em franca deterioração.
O salvamento da AIG no dia seguinte, o pacote de US$ 700 bilhões para dar solvência aos bancos, as diversas intervenções de bancos europeus garantindo seus próprios bancos e garantindo os cidadãos depositantes, e a baixa coordenada de juros pelos bancos centrais não fizeram efeito até agora.
Essa resistência dos mercados financeiros às ações dos governos é mais uma demonstração de sua irracionalidade. De seu clássico comportamento reflexivo e de manada. Estou seguro, entretanto, que a confiança voltará em breve. Não plenamente. Certamente com cicatrizes para os EUA e com prejuízos para todos, inclusive cerca de dois anos de recessão.
Mas não teremos nada parecido com a depressão dos anos 1930, porque, naquela época, o governo americano demorou quase quatro anos para agir.
Agora, usando instrumentos keynesianos e pragmáticos, não apenas o governo americano, mas todos os governos relevantes financeiramente estão agindo imediatamente, e com força. E são governos que têm por trás de si Estados fortes, democráticos, dotados de legitimidade política e de recursos fiscais vultosos. Não há razão para que não sejam afinal bem-sucedidos e a confiança seja recuperada.


LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA , 74, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994".

Internet: www.bresserpereira.org.br
lcbresser@uol.com.br



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