São Paulo, Sexta-feira, 14 de Janeiro de 2000


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OPINIÃO ECONÔMICA

Década perdida?

MAILSON DA NÓBREGA

Em dezembro passado, a exemplo do que acontecera no final dos anos 80, falou-se em década perdida. Houve até quem identificasse a causa da perda: a política cambial anterior. Tratam-se de conclusões muito equivocadas.
Bolívar Lamounier já havia chamado a atenção para esse erro. Ele rotulou de opacas as afirmações desse tipo feitas na década de 80. Eram interpretações movidas apenas pela ótica do crescimento econômico. Não enxergavam, portanto, as positivas transformações políticas e sociais por que passava o país.
Essa visão insuficiente do processo de desenvolvimento não é característica exclusiva do Brasil. Talvez seja mais forte entre nós a idéia de que a medida essencial do desenvolvimento deva ser a elevação da renda per capita.
Essa convicção tem origem no sucesso das estratégias passadas de desenvolvimento centradas no Estado, via políticas industriais voltadas para a substituição de importações. Como lembra Lamounier, é difícil esquecer o que dá certo.
Sérgio Abranches e José Pastore têm mostrado em seus trabalhos de pesquisa que o Brasil vem mudando para melhor, precisamente a partir das décadas de 80 e 90. Assim, considerá-las perdidas é no mínimo um exagero.
Abranches assinala rupturas que contribuíram para a formação de um novo padrão mental. Pastore realça indicadores que apontam para a intensa e fascinante mobilidade social. Ambos provam que estamos construindo uma nova sociedade.
Miriam Leitão indicou essas mudanças em sua coluna no "O Globo" de 2/1/00. Por exemplo, nas chamadas décadas perdidas, o brasileiro ganhou dez anos em sua expectativa de vida. A mortalidade infantil foi reduzida à metade. A educação melhorou.
O Brasil começou a avançar em questões vitais para o desenvolvimento exatamente nas décadas que as visões pessimistas chamam de perdidas.
O prêmio Nobel de economia de 1999, Amartya Sen, em seu mais recente livro, Development as Freedom, sustenta que o desenvolvimento não pode ser identificado meramente com "o crescimento do PIB, a elevação da renda per capita, a industrialização, o avanço tecnológico ou a modernização social".
Desenvolvimento, prossegue Sen, é "o processo pelo qual são expandidas as liberdades efetivas dos cidadãos", as quais devem constituir não apenas o objetivo do desenvolvimento, mas sobretudo seus principais meios.
Cinco distintos tipos de liberdades, vistas sob a perspectiva instrumental, são examinados nessa magnífica obra: (1) liberdades políticas, (2) oportunidades econômicas, (3) oportunidades sociais, (4) garantias de transparência e (5) segurança, vista como a prevenção da ocorrência da miséria abjeta, da fome e da morte que delas decorre.
Nessa perspectiva, há motivos para comemorar as décadas de 80 e 90 e não para lamentá-las, pois foi nelas que conquistamos dois dos pilares básicos do desenvolvimento, quais sejam, a democracia e a estabilidade econômica.
Além disso, a liberdade de imprensa se consolidou. As finanças públicas ficaram transparentes depois das reformas realizadas entre 1987 e 1989. Surgiram o seguro desemprego e programas de renda mínima em alguns municípios. O fim da inflação eliminou uma poderosa fonte de desigualdade social.
A privatização das telecomunicações produziu expansão inédita e animadora dos respectivos serviços, tão rapidamente que às vezes nem nos damos conta das melhorias, as quais têm consequências econômicas e sociais inequívocas.
Quem diria, por exemplo, que a oferta de telefones celulares, de 600 mil em janeiro de 1995, pularia para 15 milhões cinco anos depois? Nesse período, segundo Ethevaldo Siqueira, o número de internautas saltou de 200 mil para 8 milhões.
O Brasil estaria melhor, é claro, se o PIB tivesse evoluído ao ritmo dos anos 70, quando batíamos recordes de crescimento sob o autoritarismo. É preciso entender, todavia, sem esquecer erros do governo, que a redução de ritmo nos anos 80 e 90 se explica essencialmente pela exaustão do modelo antigo e pela transição para um novo.
O que nos amarra agora são o desequilíbrio fiscal, o irracional sistema tributário e a anacrônica legislação trabalhista. Aqui também estamos avançando, seja na construção de consensos, seja em reformas efetivas, ainda que lentas.
Essas restrições ao crescimento foram agravadas pela Constituição de 1988, esta sim uma ocasião perdida. Felizmente, seus desatinos começaram a desaparecer na década "perdida" de 90.
O Brasil está fincando as estacas de um novo e sólido edifício do desenvolvimento. Falar em década perdida é, pois, um despropósito.


Mailson da Nóbrega, 57, ex-ministro da Fazenda (governo José Sarney), sócio da Tendências Consultoria Integrada, escreve às sextas-feiras nesta coluna.
E-mail: mailson@palavra.inf.br


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