São Paulo, segunda-feira, 15 de março de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Inflação sustentável

JOÃO SAYAD

1) para que não exista inflação, sempre que um preço sobe, outro preço de igual importância precisa cair na mesma proporção. Subiu 10% o preço da gasolina, os preços agrícolas ou as tarifas de ônibus precisam cair 10%. É um requisito formidável ("Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa": "Formidável" - que ultrapassa as dimensões usuais, fantástico. Antigamente: que provoca medo e pavor).
2) Nos Estados Unidos ou na Europa, quando o preço da gasolina sobe, é possível substituir transporte privado por transportes público. Mesmo assim, o preço sobe, os usuários de automóveis e transportes públicos ficam mais pobres e reduzem os gastos em alimentos, habitação, viagens e diversões. O preço das outras coisas cai um pouco. Preços regulados pelo governo e preços de produtos vendidos em mercados oligopolizados -isto é, onde existem poucos produtores- não caem. O aumento do preço da gasolina provoca inflação.
3) Quando sobem outros preços importantes, como a taxa cambial, preços agrícolas ou tarifas públicas, há um efeito substituição no consumo do produto cujo preço subiu e um efeito renda que reduz o consumo e o preço dos outros bens. Mesmo assim, há inflação.
4) O Brasil tem poucas estradas, sem manutenção e cheias de buracos, e transporte público precário. A participação das despesas de transporte e alimentação nos salários é elevada. As elasticidades de substituição da demanda e da oferta são menores. Quando aumenta o preço da gasolina, da taxa de câmbio ou dos preços agrícolas, é mais difícil substituir o produto cujo preço aumentou por outros produtos. O aumento de preço causa mais inflação aqui do que causaria nos EUA e na Europa.
5) Trabalhadores gastam parcela muito grande da renda com transportes e alimentação. Quando aumenta o preço da gasolina, o salário precisa ser corrigido ou o trabalhador não consegue pagar o ônibus. O efeito renda de preços mais altos é insuportável. A participação de tarifas públicas e preços rígidos de setores oligopolizados é maior do que nos países ricos. A mesma variação de preço que provoca uma determinada inflação nos EUA e Europa provoca inflação maior no Brasil.
6) Entre 1994 e 1999, o Brasil combateu a inflação usando o câmbio como âncora. A sobrevalorização da taxa cambial foi mantida graças a intervenções do Banco Central e a uma política de juros muito altos. A dívida pública aumentou de 30% para 50% do PIB. Em termos financeiros, o combate à inflação custou US$ 120 bilhões em dívida publica interna e uma dívida externa adicional do governo de US$ 100 bilhões, desindustrialização, menos produção agrícola e desemprego. Somando os dois custos, gastamos US$ 220 bilhões, sem contar a destruição de postos de trabalho e capacidade produtiva para manter a inflação baixa. A âncora não resistiu. Era insustentável.
7) Desde 1999, o Brasil usa o programa de metas de inflação. A dívida passou de 50% para 60% do PIB em 2003. Em termos financeiros, custou US$ 60 bilhões em dívida nova, além dos juros que foram pagos com superávit primário -ou seja, mais US$ 156 bilhões. Já gastamos US$ 216 bilhões, um terço do PIB anual brasileiro. A âncora de juros é sustentável?
8) Por que âncoras brasileiras são tão caras e não conseguem fazer com que a inflação convirja para níveis internacionais? Porque os choques de custos de petróleo, de preços agrícolas ou de preços de matérias-primas causam mais inflação aqui do que nas economias desenvolvidas. A âncora não consegue segurar a inflação brasileira em níveis internacionais.
9) O Banco Central afirma que nos preparamos para o crescimento sustentável. Como estamos nos preparando? Acumulando reservas para suavizar as desvalorizações cambiais que causam inflação? Reduzindo a dívida pública? Investindo em transporte público, modernização das redes de transporte e portos por onde escoam as safras agrícolas? Por que o desenvolvimento não é sustentável agora e será depois?
10) A meta de inflação estabelecida pelo Copom é sustentável?
11) Mais um ano de taxas de juros reais de 10%, superávit de 4,25% do PIB e mesmo assim a dívida pública ainda pode aumentar. Em 2004, vamos pagar US$ 54 bilhões "para ver" se a meta de inflação é sustentável.
12) O desenvolvimento sustentável está cada vez mais longe. A descoberta de que a meta de inflação é insustentável, cada vez mais perto.


João Sayad, 57, economista, é professor da Faculdade de Economia e Administração da USP (Universidade de São Paulo). Escreve às segundas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

E-mail - jsayad@attglobal.net


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