São Paulo, quinta, 15 de maio de 1997.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTIGO
A Alca e a abertura

JOSÉ SERRA
Que relação poderia haver entre a possível criação da Área de Livre Comércio das Américas -a Alca- e um remoto debate realizado durante a campanha eleitoral nos Estados Unidos em 1992? A resposta é: tudo.
Nessa campanha, defrontaram-se, na televisão, Albert Gore, candidato a vice de Clinton, e Ross Perot, candidato presidencial independente. Perot manifestou-se contra o tratado comercial entre os Estados Unidos, o Canadá e o México, o famoso Nafta, que estava então sendo debatido no Congresso norte-americano. Gore, a favor do Nafta, não moderou seus argumentos: "O Nafta será mais importante para os Estados Unidos do que a compra da Louisiana".
Como é óbvio, criou-se um grande mal-estar entre os mexicanos, à sombra do lamento do ditador Porfirio Diaz: "El problema de México es que está muy lejos de Dios y muy cerca de los Estados Unidos".
Tendo Clinton vencido a eleição e conseguido aprovar o Nafta em 1993, enviou Gore ao México em dezembro desse ano, a fim de comemorar o resultado e, principalmente, como forma de obter desculpas pela sua infeliz declaração de dois anos antes.
Entendeu-se, porém, que o sucesso da viagem exigia que algo mais fosse anunciado pelo vice-presidente, partindo então, de algum assessor, a sugestão da criação da Alca.
Feito o anúncio, ficou o problema: o que fazer? Depois da hesitação, decidiu-se pela convocação dos chefes de governo das três Américas em Miami, no final de 1994, dias antes de o presidente Itamar Franco encerrar seu mandato e de explodir a crise cambial mexicana (1).
Outro fato curioso quanto ao Brasil é que o objetivo da Cúpula de Miami nos pegou de susto. O presidente eleito Fernando Henrique Cardoso, acompanhando Itamar à Flórida, somente depois de lá chegar é que tomou conhecimento do assunto e da importância do compromisso que o Brasil era chamado a assumir e acabou, até certo ponto, assumindo. E o presidente Itamar não parecia especialmente informado sobre a matéria.
Apesar do acaso, do improviso e do susto, há observadores, como o embaixador Rubens Ricupero, que chegam a afirmar que "o Brasil joga seu destino na negociação da Alca, porque, dependendo de como ela for conduzida ou concluída, as possibilidades de termos um projeto autônomo de desenvolvimento aumentarão ou se estreitarão de uma maneira muito mais dramática do que as consequências das negociações globais" (refere-se à Organização Mundial do Comércio).
Um alerta desse tamanho, vindo de um embaixador altamente qualificado e experiente, sugere, no mínimo, a importância de retermos algumas condições básicas da realidade comercial brasileira no contexto interamericano, a fim de avaliarmos melhor o que está em jogo.
Alca não é mercado comum
Para começar, convém chamar a atenção para um oba-oba desinformado que se insinuou junto à opinião pública mais informada: muitos consideram que o figurino da Alca será o do Mercado Comum Europeu, com todas as suas aconchegantes virtudes para as economias menos desenvolvidas da região.
Mas não se trata disso. A Alca pertence ao gênero das zonas de livre comércio, nas quais circulam mercadorias com razoável liberdade, mas sem uma política comercial comum em relação ao resto do mundo nem mobilidade de fatores. Já a União Européia, além do livre comércio, adota uma política comum para o resto do mundo (no estilo união alfandegária) e, acima de tudo, prevê a livre movimentação do capital e da força de trabalho dentro do seu perímetro.
Atente-se para o critério de "livre movimentação de força de trabalho" para entender o quanto a possibilidade da Alca está distante de um mercado comum: imagine-se os EUA e o Canadá abrindo seu território aos milhões de imigrantes dos milhares de municípios "Governador Valadares" espalhados por toda a América Latina. Imagine-se, também nas Américas, a canalização de caudalosos recursos a fundo perdido dos países mais ricos para investimentos em infra-estrutura das áreas e países menos desenvolvidos, como se observa na União Européia.
O Brasil nas Américas
É importante ter presente que, na essência, para os EUA, a Alca é mais um objetivo político do que econômico, pois os mercados dos países do Nafta equivalem a cerca de 87% do mercado hemisférico. Mesmo para os demais países da região os EUA já são, de longe, o maior parceiro comercial. Isso, aliás, evidencia uma assimetria conhecida, pois, para os países latino-americanos, o mercado norte-americano é bem mais importante.
Assim, os EUA absorvem 15% das exportações dos países do Mercosul e 38,5% dos demais países latino-americanos (exceto o México). Em troca, suas vendas ao Mercosul equivalem a tão-somente 3% de suas exportações totais; para o resto da América Latina (exceto o México), a proporção é de 3,7%.
De todo modo, tanto quanto o fator econômico possa pesar, o alvo número um dos EUA é o Mercosul, que detém 10% do mercado das Américas, e, dentro deste, o Brasil, que detém dois terços do mercado da região correspondente. Ou seja, para os EUA o sucesso econômico da Alca significa, basicamente, o acesso ao mercado brasileiro e, não esqueçamos, às fatias dos mercados latino-americanos hoje ocupadas pelo Brasil.
É para esses países (exclusive o México) que se destinam 29% das exportações brasileiras, proporção maior do que a destinada à União Européia (27%) ou aos Estados Unidos (19%). Somente para a América do Sul, 80% das exportações brasileiras são de produtos manufaturados.
São constatações relevantes, pois, na concepção do governo norte-americano, o acordo da Alca deveria revogar todas as preferências previstas nos acordos bilaterais, multilaterais ou regionais existentes, inclusive o Mercosul. Existem hoje cerca de 110 acordos comerciais entre os países da América do Sul (mais o México), os quais beneficiam 60% do comércio negociado da região (2). O que aconteceria diante do chamado "borrón y cuenta nueva" (apagar a lousa e começar de novo), que os Estados Unidos defendem?
Aliás, sendo o personagem latino-americano mais importante na negociação da Alca, o Brasil é também o país da região cuja estrutura econômica é a menos complementar em relação à dos países do Nafta.
O Brasil não se realizará, como o Chile (cujo PIB é menor do que o da cidade de São Paulo) vem fazendo, com grande sucesso, como economia essencialmente primário-exportadora. Tem ainda, apesar da convicção ou desejo contrário de alguns, a pretensão de possuir uma indústria diversificada e eficiente, que há tão-só 15 ou 20 anos, acreditem, era a maior e a melhor do finado Terceiro Mundo.
Isso não significa, evidentemente, que o país não possa encontrar seu caminho para estreitar suas relações comerciais com a área do Nafta de uma forma dinâmica. Mas o encontro e a pavimentação desse caminho em relação ao Brasil exigem muito mais comedimento, esforço e cooperação recíproca dos parceiros do que para qualquer outro país de fora do Nafta.
A abertura brasileira
O Brasil está à vontade para aproximar-se com cautela da Alca e, sobretudo, do cronograma que se pretende. Não tem motivo para nenhum complexo de inferioridade em matéria de liberalismo comercial, pois, nesta década realizou um dos mais rápidos, drásticos e massivos processos de abertura de que se tem registro em países mais industrializados.
Por iniciativa do governo Collor, de 1990 para cá foram desmontados todos os controles quantitativos sobre as importações -fator crucial para a abertura econômica- e, paralelamente, promovida uma forte rebaixa tarifária. Entre 1987 e 1990, a tarifa média já havia caído de 51% para 32,2%. Desde então, a queda foi até 12,1%. A tabela abaixo, com estimativas preliminares, nos fornece um quadro comparativo das estruturas tarifárias de alguns países ou blocos:

Países e tarifa média (%):
União Européia: 7,1
Estados Unidos: 5,1
Japão: 17,3
Coréia: 17,9
Brasil: 12,1
Argentina: 13,4
Chile: 11,0
Colômbia: 13,4
México: 12,0
Peru: 16,3

Assim, a tarifa média brasileira é inferior à do Japão e à da Coréia, levemente inferior à da Colômbia e à da Argentina e pouco superior à do Chile, cuja economia é tida como escancarada ao exterior.
Mais ainda: se levarmos em conta os impostos à importação efetivamente pagos, a tarifa média real no Brasil será ainda muito menor do que a alíquota média: cerca de 7% (em 1996), sem dúvida uma das mais baixas do mundo.
Por que essa diferença? Fundamentalmente, graças aos regimes especiais de importação existentes -da Zona Franca de Manaus, da Aladi e do Mercosul-, bem como à redução para os fabricantes de veículos e montadoras.
Aliás, o ímpeto da abertura foi tão grande que o Brasil -perseguindo objetivos políticos compreensíveis- não hesitou em fazer concessões aos parceiros do Mercosul, ao admitir um "regime de adequação" que eliminou alguma das vantagens iniciais da economia brasileira sobre as outras. Também aceitou submeter-se, no âmbito do Mercosul, à chamada TEC (Tarifa Externa Comum), que, além de envolver impostos de importação menores dos que os apresentados à Organização Mundial do Comércio, obedeceu a critérios de interesse não exclusivamente nacional e, na prática, diminuiu dramaticamente o raio de manobra para a adoção de uma política comercial mais autônoma.

Não há retrocesso
Além da eliminação dos controles quantitativos, da rebaixa tarifária e das concessões no âmbito do Mercosul, a abertura comercial brasileira pelo lado das importações (inclusive turismo) foi estimulada pelas políticas de câmbio e juros adotadas a partir da estabilização do Plano Real, que, por sua vez, inibiram a expansão das exportações.
Particularmente em relação aos EUA, graças à abertura e à retomada do crescimento sustentado no Brasil entre 1992 e 1996, nossas importações aumentaram cinco vezes mais do que nossas exportações (137% contra 32%). A partir de 1995, e pela primeira vez desde 1980, os EUA passaram a obter caudalosos superávits comerciais com o Brasil.
Um leitor bem informado e adepto incondicional do livre comércio pode estar perguntando, a esta altura, se, embora significativa, a política de abertura não estará sofrendo um retrocesso.
Lembrará, por exemplo, o aumento da alíquota na importação de eletrodomésticos, o regime automotriz e as limitações ao crédito às importações. Quero assegurar a esse leitor que de modo algum essas medidas configuram um retrocesso geral na abertura deflagrada por Collor e Zélia Cardoso de Mello.
Preliminarmente, lembre o leitor, a abertura foi lançada, no início dos anos 90, sob uma taxa de câmbio efetiva (e prevista) muito menos apreciada do que a prevalecente desde o segundo semestre de 1994.
Segundo, no caso dos eletrodomésticos, as alíquotas altas não tiveram o efeito de inibir as importações -como, aliás, nossa balança comercial mostra-, mas sim de deslocá-las parcialmente para a Zona Franca de Manaus (como importação de produtos acabados ou apenas desmontados, o que dá quase na mesma), na qual as alíquotas do Imposto à Importação equivalem a menos de um sexto das vigentes para o resto do país e cujas vendas no mercado doméstico são isentas de Imposto de Renda, IPI e parcela do ICMS.
Quanto ao regime automotriz, o Brasil não fez mais do que reproduzir o modelo argentino (e, de forma mais moderada, o mexicano, que era e continua sendo muito mais fechado do que qualquer outro na América Latina).
Sem tal regime (que é transitório), seria inviável o padrão de integração comercial previsto para o Mercosul. De mais a mais, faz parte desse regime uma drástica redução de alíquotas de importação de componentes e bens de capital, de modo que, na prática, ele envolve mais investimentos e uma abertura maior do setor. Implica, por exemplo, um expressivo aumento das exportações norte-americanas no ramo automobilístico para o Brasil.
Por fim, não está demais lembrar que a restrição de crédito às importações não é uma medida essencialmente comercial, mas financeira, evitando importações contratadas não porque o produto estrangeiro tenha melhor qualidade ou menor preço, mas exclusivamente como expediente para formação de capital de giro, graças à distorção dos juros domésticos, excessivamente elevados em face dos internacionais.
Quem é a favor do Proex, programa destinado a proporcionar juros internacionalmente competitivos aos exportadores brasileiros, obviamente concordará com a decisão do governo de tentar estabelecer isonomia financeira também no caso das importações "vis-à-vis" a oferta doméstica.
Mas o leitor pode, ainda, ficar mais tranquilo: a abertura comercial brasileira não foi acompanhada pela introdução generalizada de barreiras não-tarifárias às importações -cotas, tarifas adicionais, normas restritivas etc.
Estas são, ao que parece, uma especialidade do Primeiro Mundo, que perturba seriamente a performance econômica brasileira. Como tenho insistido sempre: as dificuldades do balanço de pagamentos brasileiro, que atrapalham nosso desenvolvimento, devem ser atribuídas ao fraco desempenho de nossas exportações. A ampliação das importações de bens do exterior (sem subsídios, é óbvio) é positiva para o bem-estar, a eficiência e a afirmação da estabilidade da economia.
Sem contrapartida
A propósito, cabe lembrar que a política de abertura comercial brasileira, do mesmo modo que em outros países latino-americanos, foi eminentemente unilateral -ou seja, não foi acompanhada por um alívio das restrições dos principais mercados consumidores, localizados nos países desenvolvidos da OCDE. Hoje, essas restrições representam precisamente um dos obstáculos principais à velocidade de implementação da Alca.
Com razão, o governo brasileiro argumenta que a implantação do livre comércio nas Américas exige, numa primeira etapa, a eliminação (total ou substancial) das barreiras não-tarifárias impostas pelos EUA às exportações do Brasil e de outros países e contrárias aos princípios da OMC.
Ou seja, tal remoção seria feita sem concessões do nosso lado, simplesmente porque elas já foram feitas -as tarifas estão baixas e os controles quantitativos foram eliminados. A prova de efetividade dessa abertura é que o déficit comercial do Brasil com os EUA passou a crescer rapidamente.
Os exemplos de restrições são abundantes e podem ser obtidos a partir de levantamentos feitos pelo MICT e pelo Itamaraty.
1. Cotas tarifárias são aplicadas a numerosas exportações de alimentos brasileiros -produtos lácteos, tabaco, atum, produtos que contêm álcool etílico ou açúcar. Acima da cota, aplica-se sobretaxa.
2. Barreiras sanitárias e fitossanitárias proíbem a importação de carne bovina e suína, bem como a maioria das frutas e vegetais brasileiros. Aos produtos permitidos são exigidas licenças prévias de importação.
3. O suco de laranja brasileiro paga tarifa de quase US$ 9 por litro; em 1995, o equivalente "ad valorem" da tarifa alfandegária norte-americana era 40%.
4. As importações de açúcar dos EUA estão submetidas a cotas tarifárias. Além disso, há um sistema de preferências que concede isenção de tarifa aos países latino-americanos e caribenhos, mas o Brasil é o único que não tem direito a tal isenção.
5. Até meados dos anos 80, o Brasil era o maior exportador de etanol para os EUA -mas foi excluído do mercado pelo aumento de tarifas e pela concessão das preferências a outros países (Israel, Caribe).
6. Abrangendo 89% de suas importações de têxteis, os EUA impõem cotas globais e específicas por produto, inclusive os provenientes do Brasil. Só no ano de 2005 tais restrições serão revisadas, de acordo com o regime da OMC.
7. Além do suco de laranja, vários outros produtos de interesse do Brasil (calçados, artigos de couro, fumo, têxteis e produtos siderúrgicos) se defrontam com tarifas ainda muito altas.
8. Subsídios concedidos pelos EUA para a exportação de produtos agrícolas, a título de contrabalançar os subsídios europeus, terminam representando concorrência desleal para produtores brasileiros de milho e afetando negativamente nossas exportações para terceiros países, como é o caso do frango e do óleo de soja.
9. Nos EUA, os procedimentos de "antidumping" e direitos compensatórios, baseados em discutível metodologia de cálculo de custos e de subsídios, bem como na utilização indiscriminada do critério da "melhor informação disponível" ("best information available"), atingem grande número de produtos brasileiros. Esses são instrumentos, aliás, pouco usados pelo Brasil. Além disso, os EUA são o único país do mundo que contabilizam supostos subsídios implícitos na privatização de empresas estatais.
10. Os Estados Unidos exigem que toda a frota de pesca de camarões brasileira (e não apenas aquela envolvida em exportações para os EUA) adote equipamentos que evitem pescar, junto com os camarões, tartaruguinhas. Praticamente não se deu nenhum tempo para adaptação.
11. Em 1990, os EUA estabeleceram diferença entre a gasolina doméstica e a importada. O Brasil e a Venezuela reclamaram e ganharam na OMC, mas a adaptação à decisão levará incertos 15 meses, no mínimo.
12. O acesso ao mercado de compras governamentais norte-americano é difícil. O "Buy American Act" ("compre americano") nas suas versões nacional e estaduais proíbe adquirir bens e serviços de fornecedores estrangeiros, impõe requisitos de fabricação local e diferenciais de preço da ordem de 6% (que podem atingir até 50% no caso da Defesa). Além disso, o Congresso norte-americano utiliza largamente dispositivos que obrigam a compras nacionais, mediante apropriações orçamentárias para programas de transporte, telecomunicações, energia e água.
13. Discrimina-se contra bancos estrangeiros que pretendem operar como bancos comerciais nos EUA. Os Estados norte-americanos discriminam contra seguradoras estrangeiras e cobram impostos adicionais sobre seguros de acidentes e bônus de indenização e seguros de vida.
14. Há limitações para investimentos estrangeiros em telecomunicações (restritos a 20% ou 25% do capital das empresas) e companhias aéreas norte-americanas (limitados a 49% do capital). Proíbe-se também a prática de cabotagem por navios construídos ou reconstruídos fora dos EUA. Emenda de 1988 permite que o presidente norte-americano suspenda qualquer operação de investimentos estrangeiros que julgue lesiva à segurança nacional -tudo em conflito com o Código de Liberalização de Capitais da OCDE e o Acordo sobre Investimentos Relacionados com o Comércio (Trims) da OMC.
Mudanças por etapa
Os exemplos citados ilustram bem a exigência (que o governo brasileiro defende) de que a maior liberalização do comércio hemisférico inclua, em sua primeira etapa, a ampliação do acesso aos mercados, mediante a eliminação de restrições quantitativas e barreiras comerciais não-tarifárias. Com clareza, a reforma tributária só deveria ser efetiva em etapas posteriores, até porque:
1. Existem os prazos e condições do Mercosul -a Tarifa Externa Comum só será completada no início do próximo século.
2. A redução tarifária até agora, no Brasil, foi bastante acentuada e rápida, sem que outros "fundamentos" da economia já tenha chegado ao estágio favorável desejado. Com outra reforma tarifária, num prazo curto, mergulharíamos numa espécie de revolução permanente, cujo irrealismo ou ineficácia seriam dignos da Quarta Internacional trotskista.
3. Mais ainda: outra vez daríamos um passo unilateral em matéria comercial. O governo Clinton já avisou que não abrirá o mercado norte-americano para os países do Pacífico asiático (Apec), em cujas negociações também está envolvido. Por que atuaria de modo diferente em relação às Américas?
Além disso, Clinton não pediu ainda ao Congresso norte-americano para iniciar as negociações comerciais exigidas pela Alca. Faltando-lhe o chamado "caminho rápido" (fast track), as negociações eventualmente feitas não virariam obrigações. Por que teríamos de fazer o oposto?
Outra orientação que o Brasil deveria defender tem a ver com o método do acordo. Nesse caso, é inconveniente o método do salame -ou seja, a Alca iria tomando consistência segundo entendimentos parciais que os EUA iriam desenvolvendo sucessivamente com um ou outro país (ou grupo de países), fatia por fatia.
Não é preciso ser um Maquiavel, nem sequer um Mosca, para identificar a óbvia vulnerabilidade desse método do ponto de vista da região latino-americana em seu conjunto, do Mercosul e especialmente do Brasil. O método correto seria outro: o acordo só valeria se todos os países o aceitassem integralmente e ao mesmo tempo. É o que no diplomatiquês de Washington já foi batizado de "single undertaking".
O erro dos extremos
A esta altura e para concluir, convém alertar para duas posturas contraditórias (e ambas insatisfatórias) diante dos dados e das considerações anteriores.
Uma delas tende a enfatizar, a propósito das dificuldades do balanço de pagamentos do país, principal obstáculo à aceleração do desenvolvimento brasileiro, a predominância dos obstáculos externos ao crescimento de nossas exportações. Diga-se de passagem que os obstáculos apontados no caso dos Estados Unidos poderiam ser fartamente enriquecidos com listas de entraves existentes na União Européia ou no Sudeste Asiático.
Repousar nessa explicação, porém, constituiria um erro na estratégia do comércio exterior brasileiro, que exige, por certo, romper barreiras externas, mas também superar poderosos obstáculos domésticos relacionados com o binômio câmbio-juros, produtividade, "custo Brasil" (inclusive custos financeiros) e a qualidade e competência de nossa política comercial.
Aliás, não nos iludamos: em certa medida, nossas cautelas em matéria de acordos comerciais externos também se devem a nossas dificuldades conjunturais domésticas, de uma economia que foi bem estabilizada do ponto de vista dos movimentos de preços, mas que ainda tem muito por fazer para financiar a elevação de sua taxa de investimentos e solidificar as condições do seu balanço de pagamentos.
A outra postura -simétrica à anterior- enfatiza unicamente os fatores domésticos e menospreza as condições externas; não apenas os obstáculos impostos pelos parceiros comerciais, mas também a relevância dos acordos internacionais, hoje com imenso potencial tutelar sobre as políticas domésticas.
Foi graças à contaminação por essa perspectiva e em meio às crises políticas e econômicas (superinflação, estagnação) que o Brasil descuidou-se (não obstante os esforços do Itamaraty) na fase final da Rodada Uruguai, que conduziu à fundação da OMC.
Na área econômica dos sucessivos governos brasileiros, a política comercial externa foi sempre relegada a um status de segunda classe. E, em matéria de "ouvir-se" a sociedade (empresários e sindicatos), como é feito à saciedade pelos países comercialmente dinâmicos, nunca passamos de formalidades, dos rapapés e dos resmungos recíprocos.
Nos anos recentíssimos, porém, as coisas começaram a mudar para bem melhor. Só temos de andar mais depressa ainda, a fim de não irmos para trás ou ficarmos no mesmo lugar, como o coelhinho no país da Alice.

(1) Essa história, que eu conhecia pelo embaixador do Brasil nos EUA, Paulo Tarso Flecha de Lima, foi agora parcialmente lembrada num livro de Richard Feinberg, ex-assessor do governo Clinton.
(2) Conforme levantamento de Rubens Barbosa, embaixador brasileiro na Inglaterra.

José Serra, 55, é senador pelo PSDB-SP. Foi ministro do Planejamento e Orçamento (governo Fernando Henrique Cardoso) e deputado federal pelo PMDB-SP (1986-88) e pelo PSDB-SP (1988-94).


Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright 1997 Empresa Folha da Manhã