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OPINIÃO ECONÔMICA
O espectro do capitalismo
RUBENS RICUPERO
Ao dar a um livro seu esse título, o editor de Economia
do "Observer", William Keegan,
parodiava a famosa frase que abre
o "Manifesto Comunista": "Um
espectro ronda a Europa: o do comunismo". Ele queria dizer que o
triunfalismo do mercado liberara
outro espectro que começava a
assombrar o mundo. Só que desta
vez era o do capitalismo...
Um arrepio efetivamente nos
assalta ao ler, no último "Relatório Mundial dos Investimentos",
da Unctad, a assustadora descrição de algumas megafusões e
aquisições entre os tiranossauros
do capitalismo contemporâneo.
A maior dessas operações, por
exemplo, a compra da Mannesmann (Alemanha) pela Vodafone
Air Touch (Reino Unido) se fez
por quase US$ 200 bilhões, perto
de 6% da soma do PIB desses dois
riquíssimos países.
Essas transações, que em 1987
não alcançavam US$ 100 bilhões,
chegaram a US$ 720 bilhões em
1992. Nesse ano, houve nada menos de 109 operações gigantes no
valor de US$ 1 bilhão ou mais cada uma. As cem maiores transnacionais, quase todas de países desenvolvidos, já controlam ativos
de US$ 2 trilhões e empregam 6
milhões de pessoas em suas filiais.
Quando se pensa que elas continuam a devorar outras firmas para crescer, que muitas se tornaram mais poderosas financeiramente do que nações médias,
compreende-se a preocupação
expressa em Bangcoc, na Conferência da Unctad, pelo primeiro-ministro da Malásia: "Se permitirmos que essas empresas operem
em países como o nosso, sem
qualquer condição, tememos que
elas acabem por engolir todas as
nossas oportunidades de negócio".
É esse, de fato, o problema mais
grave do gigantismo: como ficará
a competição, alma do capitalismo, sem a qual ele se desnatura e
degrada? A preocupação vem de
longe. Em 1902, J.A. Hobson publicava "Imperialism, a Study",
que teve muita influência no livro
de Lenin, "Imperialismo, estágio
supremo do capitalismo". Hobson, que não era marxista, viu justo ao identificar a busca de oportunidades de investir como mola
impulsionadora do expansionismo europeu da época.
O relatório da Unctad conclui,
como Hobson, que mesmo empresas sem muita vontade de engajar-se em fusões e aquisições
são obrigadas à expansão pois, do
contrário, os concorrentes, após
monopolizar todas essas oportunidades, acabarão por digeri-las
ou destruí-las. Alguns marxistas
como Rosa Luxemburgo e, em
particular, o austríaco Rudolph
Hilferding destacaram sobretudo
o papel central nas concentrações
do capital financeiro e é verdade
que no ano passado as empresas
financeiras foram extremamente
ativas como compradoras, respondendo por cerca de um quarto do total das fusões e aquisições
de caráter internacional.
A razão que levou tantos autores do começo do século 20, marxistas ou não, a interessar-se pelo
fenômeno foi a onda concentracionária sem precedentes que
ocorreu no capitalismo do fim do
século 19, em especial nos Estados
Unidos entre 1898 e 1902. Nesses
cinco anos, firmas que representavam aproximadamente metade
da capacidade manufatureira
americana se fundiram ou adquiriram outras companhias. Essa
onda alterou profundamente a estrutura industrial, introduzindo o
"big business" no centro da economia e dando nascimento a gigantes como a US Steel, a International Harvest e outros grandes.
O relatório da Unctad estabelece um sugestivo paralelo entre o
que acontece atualmente em dimensão internacional e aquele
período. Na época, a tendência à
concentração contribuiu muito
para o surgimento de um mercado nacional unificado em todo o
território americano, onde antes
existiam apenas mercados regionais e, a essa unificação, correspondeu o aparecimento de um
sistema integrado de produção.
Perguntam-se os analistas se não
estaria ocorrendo agora a emergência de um mercado global para empresas, em complemento a
crescentes mercados regionais ou
globais para produtos e serviços e
a um sistema de produção que se
forma em escala planetária.
Se assim for, é de esperar que, ao
mesmo mal, se aplique idêntico
remédio. A partir de 1903, a reação nos EUA à excessiva concentração e à busca de posição dominante no mercado que a motivava
fez com que os tribunais americanos passassem a interpretar o
Sherman Antitrust Act de maneira a cobrir as fusões e aquisições.
Essas últimas, sempre que ameaçassem reduzir a concorrência,
foram proibidas pelo Clayton Act
(1914), criando-se a Federal Trade
Commission para reprimir as violações da lei. A defesa da concorrência conduziria, no devido tempo, ao desmembramento da Standard Oil, gerando tradição quase
secular de promoção ativa da
competição, da qual o mais recente episódio é o processo contra a
Microsoft.
Algo de similar terá de suceder
em termos internacionais para
proteger a concorrência ameaçada. Esse é justamente um dos domínios em que a globalização em
curso mais necessita de novas regulações. Os cartéis anticompetitivos como o das vitaminas, há
pouco desmantelado nos EUA,
são realmente, como disse o comissário europeu Mario Monti, o
"câncer da economia".
A fim de combatê-los, será indispensável esforço de coordenação e colaboração internacionais
que só terá efeito se os Estados forem suficientemente fortes para
impor-se ao poder dos gigantes
privados. Nessa hora, alguns hão
de descobrir que, ao dar crédito às
baboseiras neoliberais, enfraqueceram tanto o Estado que este é
incapaz até de defender a concorrência. Não é dos menores paradoxos do nosso tempo que os Estados Unidos, berço da globalização, sejam dos raríssimos Estados
fortes o bastante para enfrentar a
Microsoft.
Rubens Ricupero, 63, secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento)
e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é autor de "O Ponto Ótimo
da Crise" (editora Revan). Escreve aos
domingos nesta coluna.
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