São Paulo, domingo, 15 de outubro de 2000

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Euforia e risco no ciclo americano

LUCIANO COUTINHO

Em artigo anterior, busquei iluminar o excepcional vigor da onda de inovação liderada pelas tecnologias da informação, especialmente na segunda metade dos anos 90. Nos EUA, a participação dos investimentos em computadores, equipamentos de telecomunicações e vários outros equipamentos de automação saltou de 25% para 40% da formação bruta total de capital ao longo da década de 90, aí descontados os preços cadentes desses bens.
O complexo das tecnologias da informação respondeu por uma parcela substancial (pelo menos um terço) do forte ritmo de crescimento do PIB americano (de 4,4% ao ano entre 1995 e 1999) e, sem dúvida, contribuiu decisivamente para acelerar os ganhos de produtividade. Esses alcançaram ritmo de 2,8% ao ano na segunda metade dos anos 90, compatibilizando a acomodação de razoáveis ganhos salariais, numa etapa de baixo desemprego, com preços subindo apenas moderadamente.
Essa expansão virtuosa e inusitadamente veloz levou muita gente à crença de que estaríamos diante de uma nova e duradoura "golden age". Nas últimas semanas, porém, apareceram inequívocos sinais de que o fluxo de lucros das principais estrelas empresariais de alta tecnologia (no terceiro trimestre deste ano) começou a fraquejar. Como resultado, o índice Nasdaq vem mostrando fragilidade inquietante. A compreensão da gravidade dos riscos ora pendentes não pode prescindir de uma reflexão sobre a notável expansão dos mercados de capital e de crédito nos anos 90.
O boom americano, especialmente no último quinquênio, resultou da combinação de dois ingredientes explosivos: de um lado, a forte aceleração da inovação tecnológica; de outro, a extraordinária exuberância da valorização da riqueza mobiliária. Esses dois fatores de propulsão se realimentaram intensamente. Com efeito, foi o mercado de capitais que injetou (e abundantemente) combustível no motor do ciclo -o complexo das tecnologias de informação.
Isso ocorreu de duas formas:
1ª) as ações das grandes empresas de telecomunicações, informática e automação se valorizaram espetacularmente, inflando os respectivos valores de mercado e viabilizando a redução dos seus custos de capital (nesse caso, as empresas prefeririam emitir maciçamente debêntures a emitir ações, por medo de "take overs" hostis);
2ª) uma notável expansão dos fundos de "venture capital" e de lançamentos públicos (IPOs, ou "initial public offerings") financiou generosamente a decolagem de pequenas empresas pioneiras (que logo se tornaram grandes), como foram os casos da Cisco Systems, Netscape, Amazon, Yahoo!, e-Bay e outras. O volume das operações de "venture capital" saltou de um patamar anual de US$ 5 bilhões nos primeiros anos da década de 90 para uma média de US$ 100 bilhões por ano desde 1998 até o primeiro semestre de 2000.
Sob o impulso desses mecanismos aceleracionistas, o índice Nasdaq subiu como um foguete ao longo do segundo semestre de 1999 até março de 2000, quando iniciou um processo muito volátil de "correção" baixista. O mercado extrapolou para o futuro o ritmo aceleradíssimo de crescimento de alguns segmentos do complexo das TI (mais de 25% ao ano), bem como generalizou essa expectativa para o conjunto das empresas, fazendo vista grossa do fato de que apenas algumas firmas líderes poderiam, eventualmente, sustentar tal desempenho.
Mas as desconfianças não tardaram a surgir quando, por exemplo, alguns empreendimentos de comércio eletrônico (via Internet) entraram em falência, ou, mais recentemente, quando várias empresas importantes do setor de TI frustraram as expectativas de lucro no terceiro trimestre deste ano.
O problema é que ainda existe uma parcela majoritária de ações supervalorizadas de tal forma que a ocorrência de um "crash" não pode ser descartada. Aterrissagens de booms alavancados são sempre precárias: a desinflação dos valores de mercado das empresas desequilibra as respectivas relações de dívida sobre o patrimônio líquido. Os mercados de papéis-risco ficam ilíquidos e até mesmo as instituições que têm o compromisso de funcionar como "market makers" ficam com um pé atrás. Nesses momentos, qualquer movimento de restrição endógena do crédito bancário pode ser fatal.
O Fed teria que aliviar a tensão, prontamente, reduzindo a taxa de juros. Mas isso pode vir a ser muito problemático numa situação em que o déficit em conta corrente dos EUA está elevadíssimo -tendendo a alcançar US$ 430 bilhões neste ano-, de tal sorte que a posição do dólar é estruturalmente muito fraca, dependente da entrada maciça e voluntária de capitais externos.
O Fed pode cair numa tremenda enrascada. Se baixar os juros, debilitará temerariamente o dólar, ameaçando jogar a economia mundial e os mercados financeiros na lona. Se não baixar os juros e permitir um "credit crunch", levará à breca o mercado de capitais e o sistema bancário. Qualquer das duas alternativas significa desastre. Haja, portanto, muita coordenação e muita intervenção heterodoxa nos mercados de câmbio e de capitais.


Luciano Coutinho, 53, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).


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