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RUBENS RICUPERO
Teatro do absurdo
Bush, Blair e Chirac preparam-se para deixar a cena da tragicomédia do mundo, sob vaias do público
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É RARO que as três principais
potências do Ocidente, Estados Unidos, Inglaterra e
França, vivam, ao mesmo tempo, a
experiência penosa de governos que
agonizam em meio a crescente descrédito. Bush, Blair e Chirac preparam-se para deixar a cena da tragicomédia do mundo, sob vaias e impaciência do público.
Completa-se a mudança de elenco
iniciada com as substituições de Aznar, na Espanha, Schroeder, na Alemanha, Berlusconi, na Itália, Saddam, no Iraque, Sharon, em Israel, e
Koizumi, no Japão, sem esquecer o
papa João Paulo 2º, no Vaticano, e
Kofi Annan, na ONU.
Até Fidel, o veterano que se eternizava numa ponta de vilão secundário, cede com relutância o lugar a
ator de talento que vem ensaiando
toda semana no programa "Alô Presidente", em Caracas, e acaba de estrear com estrondo na tribuna das
Nações Unidas.
Mesmo sem conhecer quem fará
os três papéis centrais (e é possível
que haja uma ou duas atrizes entre
as futuras escolhas na França e nos
Estados Unidos), a renovação do
elenco não garante que se altere o
enredo, dominado por dois episódios dos primeiros atos: os atentados de 11 de setembro e as invasões
do Afeganistão e do Iraque. A não
ser que o anônimo autor se inspire
em Pirandello e dê alguma liberdade
aos atores, como em "Nesta noite se
improvisa".
Ainda em tal hipótese, não será fácil aos novos desvencilharem-se do
emaranhado criado pelos atuais canastrões. O primeiro ator, por exemplo, herdou do predecessor, Clinton,
um país sem déficits e sem guerras e
deixa ao sucessor déficits colossais e
duas guerras sem perspectivas de
acabar.
A trama não parece ter nenhuma
lógica. Logo após os atentados, Bush
desviou a atenção da conspiração Al
Qaeda para focalizá-la em três vilões
de domicílio conhecido, acusados de
buscarem armas de destruição maciça e formarem o tenebroso Eixo do
Mal.
O propósito da ação seria facilitar
a liquidação, uma após outra, dessas
ameaças encarnadas em países definidos, para assim melhor extirpar a
anônima e invisível conspiração terrorista.
Ora, vários atos depois, a confusão
aumentou. O Iraque, número um do
Eixo a ser atacado, não tinha terrorismo e agora tem para consumo
próprio e para exportar mediante
treinamento de novos talentos.
Segundo estimativa recente, já
morreram 650 mil não-combatentes (1 em cada 40 iraquianos) e a
guerra civil nem começou. Além do
mais, era o único dos três que tinha
de fato abandonado os denunciados
programas de armas.
Não admira que os outros, deduzindo que o colega havia sido atacado porque ladrava mas não mordia,
decidiram acelerar o esforço para
dotar-se de dentes. A Coréia do Norte já explodiu sua bomba, ao passo
que o Irã tenta armar-se enquanto é
tempo.
Bush e acólitos, Cheney e Rumsfeld, continuam a ameaçar, mas seus
próprios generais começam a rebelar-se de público. Ao mesmo tempo,
as cinco agências de inteligência
concluem que a invasão do Iraque
foi um prato feito para os terroristas.
Aonde quer chegar o autor com
enredo que parece não deixar saída
para o herói?
O segundo ator, Blair, é mais talentoso que o primeiro, mas permitiu que este lhe roubasse todas as cenas, de modo que até seus fãs o abandonaram e reclamam que ele se
apresse em deixar o palco.
O terceiro coadjuvante teve de engolir que seu país rejeitasse a Constituição européia, idealizada por outro ex-presidente francês.
Dos demais protagonistas, o mais
rasputiniano, Putin, está demasiado
ocupado em representar Ricardo 3º
em seu quintal como "peça dentro
da peça". O chinês, com oriental impenetrabilidade, arquiteta em silêncio o momento de ocupar a cena
principal.
É tamanha a incoerência do enredo que, mais do que o teatro, o que
ele evoca são os novelões de outrora.
Como em "La Tía Julia y el Escribidor", de Vargas Llosa, no qual Pedro
Camacho, o escrevinhador, se emaranha em tal barafunda que só encontra uma solução: convidar os
personagens a um casamento e soterrá-los todos no terremoto que
destrói a igreja. Será esse o destino
do teatro do mundo? A ponto de não
sobrar nem sequer o "maestro suggeritore" para anunciar: "La commedia è finita"?
RUBENS RICUPERO , 69, diretor da Faculdade de Economia
da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas
sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.
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