São Paulo, domingo, 15 de outubro de 2006

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RUBENS RICUPERO

Teatro do absurdo


Bush, Blair e Chirac preparam-se para deixar a cena da tragicomédia do mundo, sob vaias do público

É RARO que as três principais potências do Ocidente, Estados Unidos, Inglaterra e França, vivam, ao mesmo tempo, a experiência penosa de governos que agonizam em meio a crescente descrédito. Bush, Blair e Chirac preparam-se para deixar a cena da tragicomédia do mundo, sob vaias e impaciência do público.
Completa-se a mudança de elenco iniciada com as substituições de Aznar, na Espanha, Schroeder, na Alemanha, Berlusconi, na Itália, Saddam, no Iraque, Sharon, em Israel, e Koizumi, no Japão, sem esquecer o papa João Paulo 2º, no Vaticano, e Kofi Annan, na ONU.
Até Fidel, o veterano que se eternizava numa ponta de vilão secundário, cede com relutância o lugar a ator de talento que vem ensaiando toda semana no programa "Alô Presidente", em Caracas, e acaba de estrear com estrondo na tribuna das Nações Unidas.
Mesmo sem conhecer quem fará os três papéis centrais (e é possível que haja uma ou duas atrizes entre as futuras escolhas na França e nos Estados Unidos), a renovação do elenco não garante que se altere o enredo, dominado por dois episódios dos primeiros atos: os atentados de 11 de setembro e as invasões do Afeganistão e do Iraque. A não ser que o anônimo autor se inspire em Pirandello e dê alguma liberdade aos atores, como em "Nesta noite se improvisa".
Ainda em tal hipótese, não será fácil aos novos desvencilharem-se do emaranhado criado pelos atuais canastrões. O primeiro ator, por exemplo, herdou do predecessor, Clinton, um país sem déficits e sem guerras e deixa ao sucessor déficits colossais e duas guerras sem perspectivas de acabar.
A trama não parece ter nenhuma lógica. Logo após os atentados, Bush desviou a atenção da conspiração Al Qaeda para focalizá-la em três vilões de domicílio conhecido, acusados de buscarem armas de destruição maciça e formarem o tenebroso Eixo do Mal.
O propósito da ação seria facilitar a liquidação, uma após outra, dessas ameaças encarnadas em países definidos, para assim melhor extirpar a anônima e invisível conspiração terrorista.
Ora, vários atos depois, a confusão aumentou. O Iraque, número um do Eixo a ser atacado, não tinha terrorismo e agora tem para consumo próprio e para exportar mediante treinamento de novos talentos.
Segundo estimativa recente, já morreram 650 mil não-combatentes (1 em cada 40 iraquianos) e a guerra civil nem começou. Além do mais, era o único dos três que tinha de fato abandonado os denunciados programas de armas.
Não admira que os outros, deduzindo que o colega havia sido atacado porque ladrava mas não mordia, decidiram acelerar o esforço para dotar-se de dentes. A Coréia do Norte já explodiu sua bomba, ao passo que o Irã tenta armar-se enquanto é tempo.
Bush e acólitos, Cheney e Rumsfeld, continuam a ameaçar, mas seus próprios generais começam a rebelar-se de público. Ao mesmo tempo, as cinco agências de inteligência concluem que a invasão do Iraque foi um prato feito para os terroristas.
Aonde quer chegar o autor com enredo que parece não deixar saída para o herói?
O segundo ator, Blair, é mais talentoso que o primeiro, mas permitiu que este lhe roubasse todas as cenas, de modo que até seus fãs o abandonaram e reclamam que ele se apresse em deixar o palco.
O terceiro coadjuvante teve de engolir que seu país rejeitasse a Constituição européia, idealizada por outro ex-presidente francês. Dos demais protagonistas, o mais rasputiniano, Putin, está demasiado ocupado em representar Ricardo 3º em seu quintal como "peça dentro da peça". O chinês, com oriental impenetrabilidade, arquiteta em silêncio o momento de ocupar a cena principal. É tamanha a incoerência do enredo que, mais do que o teatro, o que ele evoca são os novelões de outrora.
Como em "La Tía Julia y el Escribidor", de Vargas Llosa, no qual Pedro Camacho, o escrevinhador, se emaranha em tal barafunda que só encontra uma solução: convidar os personagens a um casamento e soterrá-los todos no terremoto que destrói a igreja. Será esse o destino do teatro do mundo? A ponto de não sobrar nem sequer o "maestro suggeritore" para anunciar: "La commedia è finita"?


RUBENS RICUPERO , 69, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.


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