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ALEXANDRE SCHWARTSMAN
Privatização "marvada"
Sem a privatização, em vez dos 50,1% do PIB, vistos em setembro deste ano, a dívida estaria hoje em 59,7% do PIB
DIZIA OTTO von Bismarck que
nunca se mente tanto quanto antes das eleições, durante
a guerra e depois da pesca. Mas a
verdade não foi a única a sofrer na
guerra eleitoral: entre suas vítimas,
destaca-se o processo de privatização, atingido por uma das muitas balas sem rumo disparadas nos últimos meses, ainda que, talvez, essa
não tenha sido a rigor uma bala perdida. A desconfiança que cerca a privatização pode ter sido uma arma
efetiva para a campanha; a despeito
da visível melhora de desempenho
das empresas privatizadas, persiste
a suspeita acerca do processo.
Isso não chega a ser surpreendente, dado que mesmo membros da suposta elite intelectual do país ainda
nutrem preconceitos sobre o assunto. De fato, li há pouco um articulista
que argumentava ser falsa a alegação de que as receitas de privatização serviriam para reduzir a dívida.
Afinal de contas, dizia, de que serviu
privatizar as empresas se a dívida
cresceu no período?
Francamente, a lógica desse argumento não difere da do samba que
afirmava: "Eu bebo sim, estou vivendo/tem gente que não bebe está
morrendo/tem gente que está com o
pé na cova/não bebeu e isso prova/
que a bebida não faz mal".
Cometendo o pecado mortal de
explicar a piada, o fato de alguns abstêmios morrerem enquanto alguns
dipsômanos sobrevivem não diz
muita coisa acerca dos efeitos da
"marvada" sobre a saúde. Do ponto
de vista médico, o que interessa é
quantos anos a menos de vida teriam os falecidos abstêmios, caso tivessem um apego maior à garrafa,
bem como quantos a mais poderiam
esperar os amantes da cana se mostrassem menor apreço à dita cuja.
Da mesma forma, pode-se perguntar: quanto seria a dívida hoje,
caso não tivesse havido o processo
de privatização? Há, essencialmente, três efeitos para serem levados
em conta. O primeiro diz respeito ao
impacto direto das receitas de privatização sobre a dívida, que entre
1996 e 2006 representaram um ganho equivalente a 6,5% do PIB.
Só que o resultado não termina aí.
Esse ganho implica encargos menores da dívida com relação aos que
ocorreriam em sua ausência. Mantidas as taxas de juros observadas no
período, estimamos que o pagamento de encargos da dívida teria sido
maior, caso não houvesse privatização, em um valor equivalente a 8,5%
do PIB. Esse é o segundo dos efeitos
a que nos referíamos acima.
O terceiro efeito, com o sinal trocado, refere-se ao impacto do crescimento do PIB e da inflação sobre a
relação dívida-PIB. Como a dívida,
devido aos dois efeitos anteriores,
foi menor do que teria sido sem a
privatização, a corrosão da relação
dívida-PIB pela inflação e crescimento do período também foi menor que seria com uma dívida mais
elevada, um impacto negativo da ordem de 5,3% do PIB. Somando os
três efeitos, concluímos que a dívida
é hoje 9,6% do PIB menor que seria
sem a privatização. Em vez dos
50,1% do PIB, observados em setembro deste ano, estaria em 59,7%
do PIB.
Note-se que essa diferença, apesar
de alta, muito provavelmente subestima o ganho real oriundo do processo de privatização. De fato, para
chegar à nossa estimativa, supusemos que as taxas de juros e de crescimento do produto teriam se mantido as mesmas na presença e na ausência da privatização, mas há bons
motivos para crer que, no segundo
caso, tanto as taxas de juros seriam
ainda mais altas do que foram nos
últimos dez anos como o crescimento do PIB seria ainda menor.
Para tanto, basta pensar no peso
que o processo de privatização teve
para o ingresso de investimento direto no país, permitindo taxas de juros mais baixas do que seriam graças
a um câmbio menos pressionado.
Da mesma forma, considere os efeitos positivos para o crescimento do
PIB oriundos do desempenho mais
vigoroso das empresas privatizadas.
Ambos os efeitos devem ter ocorrido, mas nenhum deles está presente
em nossa estimativa.
Preconceitos à parte, o que realmente me surpreende é a tímida defesa da privatização a despeito de
evidências consistentes acerca dos
enormes benefícios que essa política
trouxe ao país. Mesmo os envolvidos diretamente no processo parecem ter dificuldades de aceitar que a
escolha de privatizar, bem com a de
usar os recursos para abater a dívida,
em vez de gastá-los, foi a mais acertada. Nas eleições, como na guerra,
falta de convicção pode ser fatal.
ALEXANDRE SCHWARTSMAN, 43, economista-chefe para América Latina do ABN-Amro, é doutor pela Universidade da Califórnia (Berkeley) e ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central.
alexandre.schwartsman@hotmail.com
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