São Paulo, quarta-feira, 15 de novembro de 2006

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ALEXANDRE SCHWARTSMAN

Privatização "marvada"

Sem a privatização, em vez dos 50,1% do PIB, vistos em setembro deste ano, a dívida estaria hoje em 59,7% do PIB

DIZIA OTTO von Bismarck que nunca se mente tanto quanto antes das eleições, durante a guerra e depois da pesca. Mas a verdade não foi a única a sofrer na guerra eleitoral: entre suas vítimas, destaca-se o processo de privatização, atingido por uma das muitas balas sem rumo disparadas nos últimos meses, ainda que, talvez, essa não tenha sido a rigor uma bala perdida. A desconfiança que cerca a privatização pode ter sido uma arma efetiva para a campanha; a despeito da visível melhora de desempenho das empresas privatizadas, persiste a suspeita acerca do processo.
Isso não chega a ser surpreendente, dado que mesmo membros da suposta elite intelectual do país ainda nutrem preconceitos sobre o assunto. De fato, li há pouco um articulista que argumentava ser falsa a alegação de que as receitas de privatização serviriam para reduzir a dívida. Afinal de contas, dizia, de que serviu privatizar as empresas se a dívida cresceu no período?
Francamente, a lógica desse argumento não difere da do samba que afirmava: "Eu bebo sim, estou vivendo/tem gente que não bebe está morrendo/tem gente que está com o pé na cova/não bebeu e isso prova/ que a bebida não faz mal".
Cometendo o pecado mortal de explicar a piada, o fato de alguns abstêmios morrerem enquanto alguns dipsômanos sobrevivem não diz muita coisa acerca dos efeitos da "marvada" sobre a saúde. Do ponto de vista médico, o que interessa é quantos anos a menos de vida teriam os falecidos abstêmios, caso tivessem um apego maior à garrafa, bem como quantos a mais poderiam esperar os amantes da cana se mostrassem menor apreço à dita cuja.
Da mesma forma, pode-se perguntar: quanto seria a dívida hoje, caso não tivesse havido o processo de privatização? Há, essencialmente, três efeitos para serem levados em conta. O primeiro diz respeito ao impacto direto das receitas de privatização sobre a dívida, que entre 1996 e 2006 representaram um ganho equivalente a 6,5% do PIB. Só que o resultado não termina aí.
Esse ganho implica encargos menores da dívida com relação aos que ocorreriam em sua ausência. Mantidas as taxas de juros observadas no período, estimamos que o pagamento de encargos da dívida teria sido maior, caso não houvesse privatização, em um valor equivalente a 8,5% do PIB. Esse é o segundo dos efeitos a que nos referíamos acima.
O terceiro efeito, com o sinal trocado, refere-se ao impacto do crescimento do PIB e da inflação sobre a relação dívida-PIB. Como a dívida, devido aos dois efeitos anteriores, foi menor do que teria sido sem a privatização, a corrosão da relação dívida-PIB pela inflação e crescimento do período também foi menor que seria com uma dívida mais elevada, um impacto negativo da ordem de 5,3% do PIB. Somando os três efeitos, concluímos que a dívida é hoje 9,6% do PIB menor que seria sem a privatização. Em vez dos 50,1% do PIB, observados em setembro deste ano, estaria em 59,7% do PIB.
Note-se que essa diferença, apesar de alta, muito provavelmente subestima o ganho real oriundo do processo de privatização. De fato, para chegar à nossa estimativa, supusemos que as taxas de juros e de crescimento do produto teriam se mantido as mesmas na presença e na ausência da privatização, mas há bons motivos para crer que, no segundo caso, tanto as taxas de juros seriam ainda mais altas do que foram nos últimos dez anos como o crescimento do PIB seria ainda menor.
Para tanto, basta pensar no peso que o processo de privatização teve para o ingresso de investimento direto no país, permitindo taxas de juros mais baixas do que seriam graças a um câmbio menos pressionado.
Da mesma forma, considere os efeitos positivos para o crescimento do PIB oriundos do desempenho mais vigoroso das empresas privatizadas.
Ambos os efeitos devem ter ocorrido, mas nenhum deles está presente em nossa estimativa. Preconceitos à parte, o que realmente me surpreende é a tímida defesa da privatização a despeito de evidências consistentes acerca dos enormes benefícios que essa política trouxe ao país. Mesmo os envolvidos diretamente no processo parecem ter dificuldades de aceitar que a escolha de privatizar, bem com a de usar os recursos para abater a dívida, em vez de gastá-los, foi a mais acertada. Nas eleições, como na guerra, falta de convicção pode ser fatal.


ALEXANDRE SCHWARTSMAN, 43, economista-chefe para América Latina do ABN-Amro, é doutor pela Universidade da Califórnia (Berkeley) e ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central.
alexandre.schwartsman@hotmail.com


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