São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 2002

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

As relações comerciais Brasil-EUA

ALOIZIO MERCADANTE

 "Atualmente, poucos (...) defendem a hipocrisia de fingir que se está ajudando países em desenvolvimento ao forçá-los a abrir seus mercados para as mercadorias das nações industrializadas e desenvolvidas, ao mesmo tempo que essas nações protegem seus próprios mercados. Tais políticas tornam os ricos mais ricos e os pobres mais pobres e cada vez mais furiosos." Joseph E. Stiglitz

A viagem do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, aos Estados Unidos foi um grande êxito. O mais importante é que a visita produziu resultados concretos, entre os quais a proposta do presidente Bush de realização de um encontro de cúpula entre os dois países, com a participação dos respectivos ministérios e coordenado pelos dois presidentes.
Além de todas as questões políticas envolvidas nas relações bilaterais, o desafio maior da diplomacia brasileira é obter resultados rápidos e significativos na esfera comercial. Os EUA representam 31% do PIB mundial, compram duas vezes mais do que a União Européia e quatro vezes mais do que o Japão. É fundamental que o Brasil dispute com competência esse mercado.
Os EUA já são o principal parceiro comercial do Brasil. No ano passado, as transações com aquele país responderam por cerca de 25% do nosso intercâmbio comercial com o exterior, uma elevação de cinco pontos percentuais em relação a 1994. Não obstante, o volume de comércio entre os dois países é ainda baixo, situando-se em torno de US$ 30 bilhões anuais. Existem condições para duplicar esse volume nos próximos quatro anos e atingir marca próxima de US$ 100 bilhões ao final da presente década.
É muito difícil, no entanto, que isso venha a realizar-se sem uma modificação substantiva do atual padrão de relacionamento comercial entre ambos os países.
Essa modificação pressupõe, em primeiro lugar, a recolocação da temática da liberalização comercial -recorrente nos discursos e nas posições negociadoras norte-americanas- em uma nova perspectiva, na qual a questão central, menos que a liberalização em si mesma, passe a ser a distribuição dos benefícios da expansão do comércio por ela induzida.
Para que essa distribuição seja equitativa, é preciso que a liberalização comercial seja uma estrada de duas mãos -e não uma política praticada por somente uma das partes envolvidas. Por outro lado, é fundamental que a liberdade de comércio promova, tendencialmente, a convergência das economias participantes -e não o aumento da brecha de renda e produtividade entre elas. Isso implica, entre outras coisas, a criação de mecanismos compensatórios das assimetrias existentes entre os dois países em matéria de capacidade econômica e tecnológica e de produtividade sistêmica, que permitam equalizar as condições de concorrência.
A experiência brasileira nos anos recentes é ilustrativa dos problemas gerados por uma abertura comercial unilateral e não programada. No período 1995/ 1998, por exemplo, quando a redução das tarifas de importação e a sobrevalorização da taxa de câmbio aumentaram, de maneira acentuada e intempestiva, a exposição da economia brasileira à concorrência externa, as exportações brasileiras para os EUA aumentaram em 10,3%, enquanto as importações provenientes daquele país se expandiram em 111,3%. Em consequência, nossa balança comercial bilateral, que era superavitária desde 1981, acumulou nesses quatro anos um déficit de quase US$ 13 bilhões. Somente a partir de 2000, na esteira da desvalorização do real, o saldo voltou a ficar positivo. No conjunto do período 1995/2001, o aumento do fluxo de comércio com os EUA (de US$ 15,7 bilhões para US$ 27,4 bilhões) produziu um déficit acumulado de US$ 12,2 bilhões; nossas exportações cresceram 60,6% contra um aumento de 92,1% das importações.
Ao contrário do Brasil, os EUA mantiveram e/ou agravaram nesse período as restrições tarifárias e não-tarifárias impostas aos produtos brasileiros. Alguns casos são emblemáticos. O Brasil foi o maior exportador de etanol para os EUA até meados da década de 80, tendo seu acesso àquele mercado sido reduzido por uma série de medidas protecionistas, incluindo um subsídio de US$ 0,54 por galão, cujo término estava previsto para 2000, mas que foi estendido até 2007. Somado ao Imposto de Importação (2,5%), isso representa uma carga de 50% sobre o preço do produto importado. O suco de laranja tem uma trajetória parecida: em 1992, o Brasil respondia por 90% do total das importações norte-americanas, tendo perdido fortemente participação no mercado em razão das vantagens concedidas a outros países e da imposição de uma tarifa ao suco concentrado reconstituído equivalente a 56% "ad valorem". Processo similar verificou-se com o açúcar, cujas importações acima da cota estão sujeitas a uma tarifa de US$ 338,70 por tonelada. A introdução do sistema de cotas em 1982 e, posteriormente, as diminuições na cota brasileira reduziram nossas exportações para menos de 15% da quantidade anteriormente comercializada.
Nos EUA, 35 produtos têm tarifas entre 70% e 350%, e 29, entre 50% e 70%. No nosso caso, em razão de acordos comerciais globais, não podemos impor tarifas superiores a 35% para produtos industriais e acima de 55% para produtos agrícolas. Os EUA conservam inalterados os picos tarifários para diversos produtos relevantes da nossa pauta de exportações, como os calçados e os têxteis. Isso, as restrições quantitativas e outras barreiras não-tarifárias -subsídios, medidas antidumping e compensatórias, assim como normas e regulamentos técnicos diversos, inclusive sanitários e fitossanitários, que, além de complexos, estão sujeitos a modificações não-previsíveis- reduzem significativamente o acesso e a competitividade de nossos produtos no mercado local. São cerca de 80 os produtos brasileiros afetados por esses tipos de barreira.
O aumento do volume de comércio bilateral exige uma agenda positiva e contrapartidas. As políticas comerciais adotadas até agora pelos EUA e seu projeto de formação da Alca, nos termos em que está colocado, vão na contramão desse propósito. Por isso é essencial abrir uma nova fase nas negociações bilaterais, que torne possível encontrar espaços de convergência para a expansão e a liberalização do comércio mutuamente benéfica.


Aloizio Mercadante, 48, é economista e professor licenciado da PUC e da Unicamp, deputado federal por São Paulo e secretário de Relações Internacionais do Partido dos Trabalhadores.

Internet: www.mercadante.com.br
E-mail -
dep.mercadante@camara.gov.br


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