São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 2002

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LUÍS NASSIF

O sambista mineiro

A toada mineira teve papel relevante na formação da música brasileira por intermédio de alguns compositores fundamentais, como Joubert de Carvalho, Hervé Cordovil e, especialmente, Ataulfo Alves.
Ataulfo jamais teve seu valor reconhecido pelos puristas do samba. Fez muito sucesso entre os brancos, brilhou no rádio e nos shows, foi considerado dos dez homens mais elegantes do país, soube administrar sua própria carreira, deve ter pelo menos umas 15 músicas entre as mais cantadas de todos os tempos. Foi sucesso demais para ser aceito sem restrições.
Sua música era filha direta do samba com a toada mineira, que ouviu de seu pai, o violeiro Severino de Souza, na cidade natal, a pequenina Miraí, que imortalizaria no clássico "Meus Tempos de Criança" e onde nasceu a 2 de maio de 1909. O estilo toada perpassaria toda sua obra, com composições de frases curtas, lógicas, limpas, como lamentos não necessariamente do morro. Suas composições são de uma simetria clássica. O fraseado vai subindo de tom, simetricamente, depois retorna ao ponto inicial e retoma a subida em formato diferente, mas sem os quebrados do samba de morro. Ataulfo compunha como "mineiro andando na estrada", dizia Mário Lago, seu parceiro.
O pai morreu quando ele tinha 12 anos, deixando arrimo de família constituída pela mãe e por quatro irmãs. Veio para o Rio com o médico recém-formado Afrânio Rezende, quando tinha 17 anos. Trabalhou em diversos bicos até se tornar prático de farmácia. Foi morar no Estácio no começo dos anos 30 e, pouco depois, teve sua primeira música gravada pela Carmen da Farmácia, a ainda iniciante Carmen Miranda. Era "Tempo Perdido", que não fez sucesso.
Em 1934, depois de introduzido nas rodas do Estácio pelo grande Bide, compôs seu primeiro clássico, "Sei que É Covardia", com Claudionor Cruz ("Sei que é covardia o homem chorar por quem não lhe quer"). E não parou mais. É de 1936 "Vai, Vai Saudade" ("Vai, vai saudade, na porta daquela ingrata..."), de 1940 o "Errei, Erramos", com Arthur Vargas Júnior ("Eu, na verdade, indiretamente sou culpado da sua infelicidade"), de 1940 o "Bonde São Januário", em parceria com outro dos grandes sambistas da história, Wilson Batista ("Quem trabalha é que tem razão, eu digo e não tenho medo de errar, o bonde são Januário leva mais um operário, sou eu quem vou trabalhar"), de 1941 o "Leva Meu Samba" ("Leva meu samba, meu mensageiro"), de 1942 o clássico "Ai que Saudades da Amélia".
O samba foi composto a partir de uma letra inicial de Mário Lago, que Ataulfo modificou radicalmente, para desconforto de Mário. Por falta de intérpretes, o próprio Ataulfo precisou cantar sua composição, acompanhado do seu coro As Pastoras (originalmente Olga, Marilu e Alda) e com introdução de Jacob do Bandolim. Em 1944, a dupla comporia outro clássico, "Atire a Primeira Pedra".
Além dos sucessos já citados, sua obra inclui "Na Cadencia do Samba", com Paulo Gesta, "Leva Meu Samba", "Mulata Assanhada", "Lagoa Serena", com José Baptista, "Laranja Madura" e por aí afora.
Em 1961 chefiou a Caravana de Divulgação da Música Brasileira no Exterior, uma iniciativa brilhante do compositor Humberto Teixeira. Em meados dos anos 60, ocorrem dois processos, pouco antes da morte de Ataulfo, em 1969. Há a redescoberta da sua obra, especialmente depois que Roberto Carlos gravou "Ai que Saudades da Amélia" em 1967.
A televisão se expande pelo país e ele passa a ser o sambista clássico de todos os canais, com uma popularidade não igualada por nenhum outro sambista. Chega a compor dois clássicos com Carlos Imperial, apresentador polêmico, um dos quais é "Você Passa, Eu Acho Graça".
Ao mesmo tempo, tem início um movimento de redescoberta do samba marginal. É quando se revela Zé Ketti, se recuperam Cartola e Nelson Cavaquinho, se redescobrem Geraldo Pereira, Wilson Batista, Ismael, Bidê e Marçal.
Aí os puristas decidiram que havia dois universos diferentes, o do sucesso e do prestígio, e tentaram tirar de Ataulfo o prestígio.
Mas Ataulfo chega a 2003 com essa mistura única, amado pelos músicos de churrascaria e respeitado por qualquer historiador isento como um dos maiores sambistas de todos os tempos.

E-mail - LNassif@uol.com.br


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