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São Paulo, domingo, 16 de março de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Nossa América e a dos outros

RUBENS RICUPERO

"Aqui jaz alguém cujo nome foi escrito na água." É só isso que serve de epitáfio a John Keats, no cemitério protestante de Roma. Com idêntico sentimento de fracasso e desesperança, seu contemporâneo de romantismo, Simón Bolivar, semanas antes de morrer abandonado em Santa Marta, na véspera da partida para o exílio, usou a mesma imagem da água ao escrever que "aquele que serve uma revolução ara no mar". Além dessa frase célebre, deixou-nos o moribundo outra, por razões compreensíveis pouco citada, mas inconscientemente seguida por milhões e milhões de indivíduos: "Em nossa América, só há uma coisa a fazer: emigrar!".
Nossa América, dizia o Libertador, para distingui-la da América deles, dos outros, a do Norte, na qual, para começar, os pais da pátria, Washington, Jefferson, morriam cobertos de honra, sem temor de serem escorraçados e proscritos, quando não assassinados, como Sucre. Desde o início, a que teve o melhor ponto de partida encarnou a idéia da terra da promessa, a que impressionou Tocqueville, serviu de modelo às falsas cópias dos demais e de pólo de atração às massas de trabalhadores da Irlanda, Alemanha, Itália, judeus da Europa oriental. A partir de meados do século 19, o sonho de "fazer a América" contagiou a outra metade, e não faltaram imigrantes europeus, árabes, judeus, japoneses, para ajudar a povoar as paragens meridionais.
Esse movimento, do qual muitos no Brasil somos os herdeiros, estendeu-se até os primeiros anos após a 2ª Guerra Mundial. Desde então, o fluxo se estancou para depois inverter bruscamente de sentido, passando a fluir do sul para o norte, para a outra margem do Atlântico e do Pacífico. Como diz meu amigo Sérgio Danese, hoje "a América são eles", isto é, os EUA, mas também a França, a Itália, a Espanha, a Inglaterra, o Japão, a Suíça, até o pequeno Portugal. A esperança de vida melhor mudou de lado, e não há sinais de que tão cedo voltaremos a tê-la do nosso.
A Argentina é o exemplo mais dramático dessa reviravolta. Em termos relativos, nenhum país, mesmo os EUA, deve tanto aos imigrantes como a terra de promissão por excelência, a Argentina de 1880 a 1914. Transformada agora em país de emigração, apesar de subpovoada, em vias de perder muitos de seus melhores talentos, a vizinha nação registra a cada ano balanços negativos mais altos entre partidas e chegadas. Já os mexicanos começaram cedo, desde o início do século 20, a emigrar para os EUA, mas o movimento se acelerou enormemente nos últimos 20 anos. Em 1980, haviam sido oficialmente registrados nos EUA perto de 2,2 milhões de mexicanos, cifra que saltou para 4,3 milhões, em 1990, e a 7,5 milhões, em 1998. Um caso extremo é o de Porto Rico, cuja população era de 3,8 milhões (1998), ao passo que outros 2,7 milhões, o equivalente a 70% do total, viviam nos EUA.
Aliás, esse é, ao lado do intercâmbio comercial, outro aspecto que diferencia nítida e crescentemente o norte em relação ao sul da América Latina. Tanto em matéria de exportações e importações quanto na direção dos fluxos migratórios, o México, o Caribe, a América Central se caracterizam por um grau muito mais intenso de concentração nos EUA do que os mais distantes países sul-americanos. Em outras palavras, a integração das nações setentrionais com o espaço econômico norte-americano se faz não só por meio das trocas comerciais mas também pela exportação de mão-de-obra.
Para ter idéia de como se tem acentuado essa tendência, vale lembrar que, nos anos 1980, um terço da migração legal para os EUA provinha do Caribe, calculando-se, em nossos dias, que caribenhos e mexicanos respondem por 80% a 90% dos 8 milhões de clandestinos (54% mexicanos). O mesmo ocorre com a América Central: ao longo dos últimos 175 anos, cerca de 1,1 milhão de centro-americanos ingressaram como imigrantes nos EUA, mas 90% chegaram depois de 1980.
No sul, as partidas também se intensificam, mas as destinações são mais diversificadas, embora os EUA conservem a primazia. Os equatorianos que emigraram são 16% da população ativa, boa parte nos EUA, constituindo, ao mesmo tempo, a principal mão-de-obra da agricultura do sul da Espanha. Estima-se que 2,2 milhões de peruanos tenham emigrado e cerca de 300 mil abandonem o país anualmente, muitos dirigindo-se igualmente à Espanha e a destinos latino-americanos. O Brasil, com mais de 2 milhões de nacionais no exterior, possui a originalidade de um forte contingente, talvez 250 mil, no Japão.
O fenômeno é mundial -200 milhões emigram por ano- e traz benefícios inegáveis. A título individual, como instrumento de mobilidade social, de que se encontra um bom exemplo no secretário de Estado americano, Colin Powell, filho de jamaicanos. Para os EUA, sonho da maioria, as vantagens vão dos cérebros do Vale do Silício ao "exército de reserva" de mão-de-obra que possibilitou acelerar o crescimento, mantendo deprimidos os salários. Para os países exportadores de gente, além do alívio da pressão demográfica, a recompensa vem pelas remessas financeiras dos emigrados, equivalente em 2002 a US$ 32 bilhões para a América Latina, 31% do total mundial, do qual 78% veio dos EUA.
O México sozinho recebeu US$ 10,5 bilhões, o dobro das exportações agrícolas, mais que o turismo e dois terços do petróleo. A América Central ganhou US$ 5,5 bilhões, o Caribe, US$ 5,45 bilhões, e os andinos, US$ 5,4 bilhões. O BID, fonte dos dados sobre remessas (os relativos às migrações são da Organização Internacional para as Migrações), calcula que as remessas para o Brasil em 2001 tenham sido de US$ 2,6 bilhões, mas julga que a cifra está aquém da realidade.
É esse o panorama da nossa América, sobretudo depois de 1980. A deles, não apenas os EUA, mas o Canadá, a Austrália, oriundos do mesmo movimento de colonização, não precisa exportar gente. Cada um tirará disso a conclusão que quiser. De minha parte, prefiro ficar com a do "Clarín", de Buenos Aires. Em artigo sobre a mobilização popular após a crise argentina, dizia o jornal que a resposta mais frequente à pergunta acerca do sentido dessa mobilização era simplesmente:
"Porque não quero que meus filhos tenham que ir embora do nosso país!".


Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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