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São Paulo, domingo, 16 de março de 2003

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

As heranças malditas e a esperança

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

A esperança é a última que morre! Um velho provérbio que aprendi menina na minha terra natal. Suas raízes parecem estar na lenda mitológica da abertura da caixa de Pandora, quando a esperança resistiu até o fim, não seguindo os males que se espalharam pelo mundo.
Na última Quarta-Feira de Cinzas, passado o primeiro Carnaval da "Esperança vence o medo", ao retomar a leitura dos jornais, fui obrigada a refletir de novo sobre a guerra e a fome, duas das heranças malditas contra as quais grande parte da humanidade tem lutado por milênios. O medo dos cavaleiros do apocalipse sempre me invade ante a iminência de uma guerra, cujos efeitos e duração são incalculáveis.
Para surpresa minha, a crônica que mais me levantou o moral sobre os "tambores da guerra" no Oriente Médio foi a de Paulo Coelho ("Obrigado, presidente Bush", publicada nesta Folha, 8/3/2003). Nunca se viu tamanha unidade entre povos de todas as nações contra o início de uma guerra como a atual. As almas dos pacifistas e dos internacionalistas derrotados nos últimos séculos por "razões de Estado" devem estar em paz finalmente.
A propaganda e a máquina de guerra do império anglo-saxão contemporâneo não conseguiram justificar essa guerra em termos defensivos nem mesmo para uma parte substancial dos cidadãos norte-americanos -e muito menos para os ingleses. A justificativa "moral", a luta do bem contra o mal, também não funcionou -talvez por se tratar de uma guerra encharcada em petróleo e arrogância.
Outras heranças malditas, como a fome e as epidemias, também não recebem justificativa "moral", nem mesmo das elites do poder e do dinheiro mais esclarecidas. A fome não é mais considerada um fenômeno natural ou geográfico sujeito a uma "lei" malthusiana. Sua generalização, não apenas às populações dos países "atrasados" mas também às metrópoles dos países desenvolvidos, contrasta com a enorme produção mundial de alimentos.
O combate à fome e à desnutrição é hoje considerado uma ação prioritária, aceita formalmente na agenda internacional das agências multilaterais, tamanha é a sua extensão à escala mundial. A solução permanente da fome passa, porém, por uma luta continuada que agregue medidas de emergência a reformas estruturantes que tomem a questão da inclusão social como eixo das políticas públicas. Esses esforços têm de ser realizados pela ação conjunta dos Estados e das sociedades nacionais com o apoio das organizações internacionais, numa perspectiva de longo prazo de maior justiça social e de desenvolvimento sustentável.
Infelizmente, as distorções das últimas duas décadas de neoliberalismo puseram em xeque as reformas progressistas do pós-Segunda Guerra Mundial e minaram os propósitos e as práticas da construção e da universalização das políticas do Estado de bem-estar. A universalização da seguridade social e o pleno emprego parecem metas mais difíceis de alcançar hoje do que há 30 anos, quando eram aceitas e praticadas nos países desenvolvidos, mesmo nos mais conservadores.
A volta dos fanatismos do mercado, do deus único e do império único minaram a capacidade dos Estados nacionais de seguir os avanços democráticos que foram sendo ampliados a partir das constituições originárias das chamadas revoluções burguesas. As reformas sociais tiveram avanços significativos na Grande Depressão dos anos 30 e no pós-Segunda Guerra Mundial. A extensão da crise atual deve colocar de novo em pauta, além dos direitos humanos, a inclusão dos direitos sociais, uma vez que o processo civilizatório não é interrompido senão temporariamente por guerras e imperialismos.
Todos os impérios modernos usaram duas justificativas para as guerras de conquista e o colonialismo: o nome de Deus e as pretensões a serem os portadores da civilização universal. O avanço do processo civilizatório global não é privilégio de nenhum Estado nacional, por mais poderoso que seja. Essa é hoje uma convicção crescente, sobretudo depois da guerra do Vietnã, da derrocada da URSS e do soerguimento econômico e social das velhas civilizações asiáticas. É verdade que permanece a dominância cultural do paradigma da sociedade de consumo e do individualismo utilitarista que teve seu clímax nos EUA, a mais rica economia do mundo no século 20. Não é fácil, porém, encontrar hoje em dia quem queira copiar o "american way of life", tamanha foi a desagregação moral e societária produzida no interior da própria sociedade norte-americana.
Não havendo "modelo" para copiar -nem o soviético, nem o norte-americano, nem o chinês, nem o japonês e, infelizmente, nem os do norte da Europa-, os povos das várias nações estão mais do que nunca obrigados a buscar o seu próprio caminho, levando em conta os erros e acertos do seu próprio passado e as experiências benéficas do processo civilizatório global.
O número de Estados independentes aumentou no pós-guerra, com o processo de descolonização nas várias regiões do mundo. É impossível impor um modelo único de Estado e de organização social a centenas de países. É possível, no entanto, promover uma luta humanitária comum pela vida desde que as elites cosmopolitas e os Estados nacionais aceitem a nova agenda de que "um mundo melhor é possível". Tanto os milenarismos apocalípticos quanto os maniqueísmos da luta do bem contra o mal estão sendo varridos para o lixo da história. Essa é uma nova esperança, de longa duração, que reatualiza o velho humanismo.


Maria da Conceição Tavares, 72, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
Internet: www.abordo.com.br/mctavares
E-mail - mctavares@cdsid.com.br


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