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São Paulo, domingo, 16 de março de 2003

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LUÍS NASSIF

O marketing do baião

No final dos anos 70 estávamos na parte de cima no bar do Alemão quando chegou o Braguinha, o João de Barro, autor de "Carinhoso" e "As Pastorinhas". Aplaudimos o mestre e ele subiu para nos fazer companhia. Rolava o papo sobre o purismo na música brasileira, comparações entre o purismo de Jacob do Bandolim e a suposta tendência comercial de Waldir Azevedo.
Perguntamos a opinião do mestre, que foi surpreendente, ainda mais para aqueles anos de intenso patrulhamento. Disse que o artista precisava ir aonde estivesse o povo, que essa história de purismo era besteira, e aproveitou para mostrar sua última composição: "A Marcha do Jegue", uma paródia ao reggae que terminava com ele simulando o ato sexual e zurrando.
Com o tempo, lendo a biografia dos vários formadores da música brasileira, percebem-se nos maiores uma vontade intensa de buscar mercado e perseguir o sucesso.
Agora, recebo de minha amiga Nana um longo depoimento dado por Humberto Teixeira ao pesquisador Miguel Ângelo de Azevedo, de Fortaleza, em 1977. Além de principal parceiro de Luiz Gonzaga, Humberto Teixeira foi deputado, criador dos primeiros órgãos de arrecadação de direito autoral e organizador de caravanas de músicos brasileiros que correram a Europa nos anos 60 divulgando a música brasileira. Além de pai da belíssima Denise Dumont.
No depoimento, Humberto Teixeira relata como foi o lançamento do baião, um ritmo que praticamente dominou a música brasileira de 1945 a perto dos anos 60. E como foi lançado esse brasileiríssimo baião, símbolo do purismo e do anticomercialismo da música brasileira?
Teixeira chegou ao Rio para estudar medicina. Lá, conheceu a geração dos tenentes músicos, Klecius Caldas, Armando Cavalcanti e Luiz Antonio. Mas foi Braguinha quem lhe abriu as portas das gravadoras.
No Rio, Humberto conheceu o compositor Lauro Maia, que viria a se tornar seu cunhado. Lauro era o compositor predileto do conjunto vocal Quatro Azes e Um Coringa. Com Maia, Humberto gravou "Deus me perdoe", uma das nossas prediletas no Alemão.
Por essa época Luiz Gonzaga começava a aparecer com a "Moda da Mula Preta" e "Xamego". Mas sua vontade maior era lançar a música do Nordeste. Combinaram lançar em conjunto. O primeiro passo foi um levantamento amplo dos ritmos de Pernambuco (terra de Gonzaga) e do Ceará, de Humberto. Pensou-se no coco, mas optou-se pelo baião por ser um ritmo de assimilação mais fácil. Naquele mesmo dia saíram as primeiras idéias em torno do "Asa Branca", seu clássico definitivo. O primeiro baião gravado na história saiu poucos dias depois: "Eu vou contar pra vocês / como se dança o baião / e quem quiser aprender vai ter que prestar atenção".
O lançamento foi planejado, e recorreu-se a um trabalho de marketing estupendamente inovador. Lembro-me, criança, assistindo ao Luiz Gonzaga tocando em cima de um caminhão, patrocinado por uma multinacional e divulgando a miséria nordestina.
No rastro da dupla surgiram o mineiro Hervé Cordovil, Zé Dantas, Sivuca, o maestro Guio de Moraes. Luiz Gonzaga se tornou o Rei do Baião, Luiz Vieira, o príncipe, Claudete Soares, a princesinha. Nas águas do baião singraram Dolores Duran, depois o coco de Jackson do Pandeiro e Gordurinha. Nos anos 60, "Asa Branca" era orgulho nacional. Com o tropicalismo, Gonzaga foi redescoberto, teve Gilberto Gil como sucessor e, depois, a grande árvore do baião se espalhou por toda uma geração de filhos de Gil, praticando a música nordestina do sertão de Pernambuco e Ceará.
Apenas nos anos 70 a música brasileira ingressou na era da choradeira recorrente. A classe média politizada tomou o espaço da presumível MPB pura. E a busca do público e do mercado passou a ser menosprezada. A música trancou-se em guetos, tornou-se hermética, chorona, deixou de lado a alegria, o buliçoso.
Por isso, ao relembrar Braguinha cantando a sua "Marcha do Jegue", quase admito que o esvaziamento da MPB não se deu apenas por conta de miopia de gravadoras. Mas por toda uma geração que caiu em uma sofisticação vazia, intelectualizada, politizada, deixando de lado a alegria.

E-mail - LNassif@uol.com.br


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