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LUÍS NASSIF
A "Disparada" de Vandré
Quando "Disparada" apareceu
na música popular brasileira, você
não imagina o barulho que causou.
A bossa nova já havia esgotado o filão mulher-barquinho-areia. Tendo como carro-chefe a TV Record,
ganhara espaço uma MPB paulista
pesadamente jazzificada, que era
para a bossa nova o que o rococó
foi para o barroco.
A reação ao uso abusivo de acordes dissonantes do samba-jazz
paulista surgiu de várias frentes.
Da própria bossa nova apareceu
uma dissidência dita nacionalista,
similar à reação da música erudita
brasileira contra o serialismo em
voga, tendo na linha de frente Baden Powell, Carlos Lira e Sérgio Ricardo. Mas foi apenas o rito de passagem para a jovem e brilhante geração que estava a caminho.
Chico Buarque ressuscitou a linha de sambas clássicos de Ismael
Silva. Sidnei Miller foi buscar nas
cantigas de roda a linha com que
bordava seus encantos; e Edu Lobo
em Villa-Lobos e Camargo Guarnieri a linha com que bordava suas
cirandas e ponteios. Os baianos foram beber em Caymmi, Luiz Gonzaga, mas, especialmente, em Jackson do Pandeiro. E havia Geraldo
Vandré, do proporcionalmente
mais musical Estado brasileiro, a
Paraíba.
Talvez a rapaziada de hoje não se
dê conta de sua importância e julgue Vandré apenas um compositor
de comportamento estranho, cantado nas missas da Comunidade
Eclesial de Base ou nos encontros
nostálgicos do velho "Partidão".
Na época, foi um murro no queixo.
Vandré não era músico tão completo quanto Edu Lobo, outro que,
como ele, trilhava as fronteiras do
folclore. Utilizava o belo salário de
fiscal da Sunab para financiar o
Quarteto Novo, que foi seu conjunto exclusivo por algum tempo. Veja
só: uma pessoa física bancando um
conjunto que tinha alguns dos futuros maiores músicos do planeta
-o percussionista Airto Moreira, o
multiinstrumentista Hermeto Pascoal e os violonistas Heraldo do
Monte e Théo de Barros. E deixava
todos loucos, com seu temperamento terrível.
Tinha a capacidade rara de, mesmo sendo letrista na maioria de
suas parcerias, injetar no parceiro
o SEU estilo de música. Com Vandré, cada parceiro tinha seu momento único de Vandré, que nunca
mais se repetiria.
Quando estourou sua primeira
composição conhecida, uma marcha-rancho -"Olha que a vida é
tão linda / e se perde em tristezas
assim / segue seu rancho cantando /
a sua esperança sem fim"-, parceria com Fernando Lona (músico da
noite paulista, que morreu logo depois, de acidente de automóvel),
imediatamente nosso grupo de serenata incorporou a seu repertório.
Naqueles anos, aliás, houve um
conjunto mágico de marchas-rancho que nos acompanharam vida
afora. Era a de Vandré, a "Marcha
da Quarta-Feira de Cinzas", de Lira e Vinícius, e o "Rancho das Flores", de Ari Barroso e Vinícius. Só
alguns anos depois, o "Rancho da
Goiabada", de João Bosco e Aldir
Blanc, mereceria figurar em tão
augusta companhia.
Mas eu comecei falando de "Disparada" e foi ali que o circo pegou
fogo. Foi no mais concorrido festival de música popular da história.
Era o primeiro da era plena da televisão, que saíra dos grandes centros e começara a se espalhar por
todo o país.
Chico Buarque já era o namoradinho do Brasil e comparecia com
"A Banda", música simples, mas
que nasceu clássica. Excursionando pelo Nordeste com o conjunto
da Rhodia, Vandré inscreveu "Disparada", em parceria com Théo de
Barros.
Dizia-se música caipira paulista,
fruto de pesquisas folclóricas. Que
mané música caipira paulista, que
nada! Era um autêntico Vandré e
pronto. Tinha elementos de viola,
na introdução, no ritmo incorporava elementos nordestinos, mas,
também, andinos. E havia a interpretação magistral de Jair Rodrigues e do Trio Maraiá. Jair era considerado injustamente intérprete
menor, por sua espontaneidade
que contrastava com os malabarismos vocais daquele fim de período.
Mas quem ouviu "Disparada" com
ele não há de esquecer jamais.
Depois houve a politização da
música de Vandré, que acabou por
vitimá-lo. De longe, Chico e Vandré foram as duas maiores influências para a juventude que começava a se iniciar nas artes da composição.
O Brasil inteiro compunha, no
embalo dos festivais. Eu mesmo, no
festival de São João da Boa Vista de
1967, inscrevi "Serpentina", música
que denunciava o uso do dispositivo intra-uterino para esterilizar
mulheres do Nordeste, veja só. Cada interpretação resultava em
duas cordas arrebentadas, de tanto
que a gente martelava o violão para arrancar "arrepios" da platéia.
E fiquei indignadíssimo quando
"Serpentina" perdeu para "Penúltima", música no estilo Chico. Registrei meu protesto em público,
para espanto dos jurados, já que a
vencedora era composição de minha autoria também.
Nesse clima louco, Vandré incorporou seu papel de condutor de povos, como um Antônio Conselheiro
da era eletrônica. Teve seu momento épico com "Prá Não Dizer Que
Não Falei Das Flores", em que colocou milhares de pessoas no Maracanãzinho, cantando contra o regime militar, para, pouco depois, ser
sepultado, primeiro pela ditadura,
depois pelos novos tempos.
Assim como outros grandes, o
tronco Vandré resultou em vários
galhos relevantes, especialmente
na música regionalista acima da
Bahia, naqueles Estados que circundam Pernambuco. Veio o
Quinteto Violado, Geraldo Azevedo, Xangai, Vital Farias -melodista extraordinário (por onde andará?). Naqueles teatros velhos de
Recife, toda semana há apresentações com cantores da região, a
maioria filhos diretos de Vandré.
Mas, vendo-o agora, solitário e
desconexo, a música que me vem à
memória é "Pequeno Concerto que
virou Canção", de um Vandré lírico, triste como a própria solidão na
qual se meteu, e de onde provavelmente jamais sairá.
E-mail: lnassif@uol.com.br
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