São Paulo, Domingo, 16 de Maio de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LUÍS NASSIF
A "Disparada" de Vandré



Quando "Disparada" apareceu na música popular brasileira, você não imagina o barulho que causou. A bossa nova já havia esgotado o filão mulher-barquinho-areia. Tendo como carro-chefe a TV Record, ganhara espaço uma MPB paulista pesadamente jazzificada, que era para a bossa nova o que o rococó foi para o barroco.
A reação ao uso abusivo de acordes dissonantes do samba-jazz paulista surgiu de várias frentes. Da própria bossa nova apareceu uma dissidência dita nacionalista, similar à reação da música erudita brasileira contra o serialismo em voga, tendo na linha de frente Baden Powell, Carlos Lira e Sérgio Ricardo. Mas foi apenas o rito de passagem para a jovem e brilhante geração que estava a caminho.
Chico Buarque ressuscitou a linha de sambas clássicos de Ismael Silva. Sidnei Miller foi buscar nas cantigas de roda a linha com que bordava seus encantos; e Edu Lobo em Villa-Lobos e Camargo Guarnieri a linha com que bordava suas cirandas e ponteios. Os baianos foram beber em Caymmi, Luiz Gonzaga, mas, especialmente, em Jackson do Pandeiro. E havia Geraldo Vandré, do proporcionalmente mais musical Estado brasileiro, a Paraíba.
Talvez a rapaziada de hoje não se dê conta de sua importância e julgue Vandré apenas um compositor de comportamento estranho, cantado nas missas da Comunidade Eclesial de Base ou nos encontros nostálgicos do velho "Partidão". Na época, foi um murro no queixo.
Vandré não era músico tão completo quanto Edu Lobo, outro que, como ele, trilhava as fronteiras do folclore. Utilizava o belo salário de fiscal da Sunab para financiar o Quarteto Novo, que foi seu conjunto exclusivo por algum tempo. Veja só: uma pessoa física bancando um conjunto que tinha alguns dos futuros maiores músicos do planeta -o percussionista Airto Moreira, o multiinstrumentista Hermeto Pascoal e os violonistas Heraldo do Monte e Théo de Barros. E deixava todos loucos, com seu temperamento terrível.
Tinha a capacidade rara de, mesmo sendo letrista na maioria de suas parcerias, injetar no parceiro o SEU estilo de música. Com Vandré, cada parceiro tinha seu momento único de Vandré, que nunca mais se repetiria.
Quando estourou sua primeira composição conhecida, uma marcha-rancho -"Olha que a vida é tão linda / e se perde em tristezas assim / segue seu rancho cantando / a sua esperança sem fim"-, parceria com Fernando Lona (músico da noite paulista, que morreu logo depois, de acidente de automóvel), imediatamente nosso grupo de serenata incorporou a seu repertório.
Naqueles anos, aliás, houve um conjunto mágico de marchas-rancho que nos acompanharam vida afora. Era a de Vandré, a "Marcha da Quarta-Feira de Cinzas", de Lira e Vinícius, e o "Rancho das Flores", de Ari Barroso e Vinícius. Só alguns anos depois, o "Rancho da Goiabada", de João Bosco e Aldir Blanc, mereceria figurar em tão augusta companhia.
Mas eu comecei falando de "Disparada" e foi ali que o circo pegou fogo. Foi no mais concorrido festival de música popular da história. Era o primeiro da era plena da televisão, que saíra dos grandes centros e começara a se espalhar por todo o país.
Chico Buarque já era o namoradinho do Brasil e comparecia com "A Banda", música simples, mas que nasceu clássica. Excursionando pelo Nordeste com o conjunto da Rhodia, Vandré inscreveu "Disparada", em parceria com Théo de Barros.
Dizia-se música caipira paulista, fruto de pesquisas folclóricas. Que mané música caipira paulista, que nada! Era um autêntico Vandré e pronto. Tinha elementos de viola, na introdução, no ritmo incorporava elementos nordestinos, mas, também, andinos. E havia a interpretação magistral de Jair Rodrigues e do Trio Maraiá. Jair era considerado injustamente intérprete menor, por sua espontaneidade que contrastava com os malabarismos vocais daquele fim de período. Mas quem ouviu "Disparada" com ele não há de esquecer jamais.
Depois houve a politização da música de Vandré, que acabou por vitimá-lo. De longe, Chico e Vandré foram as duas maiores influências para a juventude que começava a se iniciar nas artes da composição.
O Brasil inteiro compunha, no embalo dos festivais. Eu mesmo, no festival de São João da Boa Vista de 1967, inscrevi "Serpentina", música que denunciava o uso do dispositivo intra-uterino para esterilizar mulheres do Nordeste, veja só. Cada interpretação resultava em duas cordas arrebentadas, de tanto que a gente martelava o violão para arrancar "arrepios" da platéia. E fiquei indignadíssimo quando "Serpentina" perdeu para "Penúltima", música no estilo Chico. Registrei meu protesto em público, para espanto dos jurados, já que a vencedora era composição de minha autoria também.
Nesse clima louco, Vandré incorporou seu papel de condutor de povos, como um Antônio Conselheiro da era eletrônica. Teve seu momento épico com "Prá Não Dizer Que Não Falei Das Flores", em que colocou milhares de pessoas no Maracanãzinho, cantando contra o regime militar, para, pouco depois, ser sepultado, primeiro pela ditadura, depois pelos novos tempos.
Assim como outros grandes, o tronco Vandré resultou em vários galhos relevantes, especialmente na música regionalista acima da Bahia, naqueles Estados que circundam Pernambuco. Veio o Quinteto Violado, Geraldo Azevedo, Xangai, Vital Farias -melodista extraordinário (por onde andará?). Naqueles teatros velhos de Recife, toda semana há apresentações com cantores da região, a maioria filhos diretos de Vandré.
Mas, vendo-o agora, solitário e desconexo, a música que me vem à memória é "Pequeno Concerto que virou Canção", de um Vandré lírico, triste como a própria solidão na qual se meteu, e de onde provavelmente jamais sairá.

E-mail: lnassif@uol.com.br


Texto Anterior: Tendências internacionais - Gilson Schwartz: Exuberância irracional
Próximo Texto: Investimentos: Previdência privada dribla recessão
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.