São Paulo, Domingo, 16 de Maio de 1999
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DRAMA URBANO
Folha acompanha rotina de desempregado fora das estatísticas do IBGE
Busca de emprego faz Gilvan andar 15 quilômetros por dia

Fotos Marlene Bergamo/Editoria de Arte/Folha Imagem
Gilvan Andrade caminha em busca de emprego


MÔNICA BERGAMO
da Reportagem Local

Com R$ 8, quatro cigarros Hollywood, a carteira de trabalho no bolso, um copo de café no estômago e uma caneta pendurada na camiseta, Gilvan Andrade, 32, sai de casa todos os dias às 5h30 para procurar emprego. Ele está sem trabalho há nove meses, desde que perdeu o emprego de ajudante-geral em uma fábrica de cortinas.
Gilvan anda mais de 15 quilômetros todos os dias, mas não consegue nada. Vive da ajuda dos irmãos e de "bicos" que, mês sim, mês não, consegue arrumar. Quando é assim, Gilvan ganha pouco mais do que R$ 100 por mês.
A mulher, Antonia, acha que ele está desempregado. Comovida, diz que às vezes o casal chega a entrar "em desespero", principalmente quando a filha única, Hellen, 3, chora porque quer um biscoito ou uma boneca que os pais não podem comprar.
Os amigos, os vizinhos, a família, todos enxergam em Gilvan um desempregado que luta para conseguir um "trabalho decente".
Para o governo, Gilvan não é um desempregado. O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que mede as taxas de desemprego, só coloca nas estatísticas as pessoas que não fizeram absolutamente nada nos últimos sete dias.
Quem fez algum "bico", por mais precário que seja, está fora. Como na semana passada Gilvan lustrou acessórios de madeira para uma fábrica de cortinas, ele não entra nas estatísticas do governo.
Assim, o IBGE registrou uma taxa de desemprego de 8, 87% em São Paulo no mês de março. A pesquisa da Fundação Seade (Sistema Estadual de Análise de Dados) e do Dieese (Departamento Intersindical de Estatísticas) reconhece em pessoas como Gilvan um "desempregado pelo trabalho precário" e registra mais que o dobro: 19,9%.
Gilvan mora no bairro Parada de Taipas, na zona oeste de São Paulo. Na quinta-feira, a Folha o acompanhou na busca de um trabalho.
Na meia hora em que demora para andar de casa até o ponto de ônibus, Gilvan fuma três cigarros. E explica como procura emprego.
- Pego o ônibus até algum lugar que tenha indústrias e começo a andar. Vejo as firmas que têm as placas com empregos. Se tem um que encaixa "pra" mim, eu bato na porta.
- E o que você quer?
- Ah, qualquer coisa, né? Tudo encaixa.
Menos motorista, porque Gilvan não tem carteira profissional classe D, e por isso não dirige kombis, vans ou caminhonetes. Ele também não quer ser faxineiro. "Graças a Deus, sei ler e escrever."
Às 6h17, o ônibus chega ao ponto. Ainda está vazio, com quatro lugares, mas Gilvan vai em pé. "Se sentar a gente fica preguiçoso. Dorme e depois não aguenta caminhar". Ainda mais quando, na noite anterior, se fica acordado para assistir à derrota do Corinthians.
A viagem até a Marginal Tietê leva duas horas. São dois ônibus para chegar à Ponte dos Remédios, onde começa a caminhada.
Gilvan desce do ônibus e pede fogo para acender o quarto cigarro do dia. Valmir Magalhães empresta o isqueiro. Ele tem 28 anos e também caminha por São Paulo à procura de um emprego.
Gilvan anda rápido. Atravessa a Ponte dos Remédios, em direção à Marginal Direita do Tietê. Do alto se vê boa parte da cidade. "É tão grande, né? E às vezes o grande não faz efeito. Quantas firmas já visitei em São Paulo e não aconteceu nada?"
Ele reclama do grau de exigência. "Para fazer qualquer coisa te pedem pelo menos o 2º grau, experiência, 1m70, boa aparência. Um cara feio que nem eu vai ter boa aparência onde?"
Gilvan dá azar. Na primeira empresa que visita, a Expresso Mercúrio, há vaga justo para motorista e conferente, uma vaga mais qualificada. Há cinco meses ele tentou esse emprego. Foi informado de que a exigência era de 2º grau.
Gilvan diz que não estudou porque em Chã Grande, interior de Pernambuco, cidade em que nasceu, não havia escola. Só salas do Mobral. Ali aprendeu a escrever o nome. Ao desembarcar em São Paulo, em 1988, com 21 anos, não sentiu falta dos estudos. "Ninguém exigia nada para te dar trabalho", diz.
Em 1991, quando conseguiu emprego na Cardal, que fabrica chuveiros, estudou num supletivo pago pela empresa. Completou a 4ª série do primário.
A economista Silvia Brandão, da Fundação Seade, explica que, com a mão-de-obra cada vez mais abundante, as empresas criam critérios rígidos que servem apenas para diminuir o número de candidatos e baratear a seleção. Um deles é a exigência de segundo grau.
Por isso, trabalhadores como Gilvan têm dificuldades para se recolocar. "A chance dele é mínima."
Na Expresso Araçatuba, Gilvan encontra coisa é pior: a placa diz que simplesmente não há vagas. Na Lever, de produtos de limpeza, nem placa há. "Se não tem placa não pergunto nada aos guardas", diz. "Pra eles, que estão empregados, é incômodo tratar com a gente".
Acende o quinto cigarro - filado - e continua a andar. Lembra de tempos melhores, dez anos atrás, quando sobravam empregos. "As fábricas laçavam o peão no meio da rua, que nem boi bravo".
Era a época do governo de José Sarney, do Brasil da hiperinflação, mas também do desemprego baixo. Naquele ano a taxa de desemprego foi uma das mais baixas da história, desde que começou a ser medida pelo IBGE - 3,85%, contra os recordes de mais de 8% que vêm sendo registrados este ano.
Gilvan cruza o rio Tietê mais uma vez. Logo depois da Ponte da Anhanguera, chega à fábrica da Sadia. "Só estamos recebendo currículo", diz o guarda. "Já mandei oito currículos para a Viação Jaraguá, quatro para a Viação Urubupungá. Eles mandam direto para o arquivo".
Na Lapa, Gilvan passa na Unitown, que só está admitindo motorista; a placa de empregos na porta da Redimix, indústria de concreto, está vazia; vazia está também a placa da Triporvac, que fabrica tripas de linguiça. Na Farmed, de embalagens, não há placas, assim como na metalúrgica Alstom.
Gilvan pára num bar, compra um maço e acende o sexto cigarro.
Ele lamenta a hora em que, há três anos, deixou a Cardal. "Eu tinha talão de cheque, convênio médico, vale-transporte. Larguei tudo para comprar uma casa".
Na Cardal, Gilvan ganhava R$ 479,00 por mês. Pagava R$ 250,00 de aluguel. Em agosto de 1996, a empresa lançou um programa de demissão voluntária. Gilvan aderiu e recebeu R$ 5.000. Pagou R$ 4.500 num sobrado em Taipas.
O plano era comprar a casa e logo arrumar um outro emprego. Gilvan nunca havia ficado mais do que três meses desempregado. Há dez anos, segundo o Seade, um desempregado demorava 14 semanas para se recolocar.
Hoje a procura dura 39 semanas, ou mais de nove meses. Depois da Cardal, Gilvan só conseguiu emprego em abril de 98. Em setembro, foi demitido. Está procurando emprego há nove meses.
Ele retoma a caminhada. Atravessa um túnel por baixo da linha do trem da Lapa. Camelôs vendem biscoitos, cotonetes, bijuterias, bonecos anunciados no programa da Angélica, da TV Globo. A filha única, Hellen, de três anos, é louca por um desses bonecos. "Ela chora, quer ter um", conta a mãe.
Na Lapa, Gilvan passa na empresa Sabó. Não há vagas. Nem pára na vidraria Santa Marina. "Já criei calo e nunca tem nada." Passa reto pela CCE, de aparelhos eletrônicos. "Exigem no mínimo 2º grau." Arrisca bater na Microservice, de microfilmagem. Na placa, nenhuma vaga.
Passa reto pelo supermercado Carrefour, onde já entregou o currículo, e arrisca visitar uma gráfica perto da Marginal. "Se tiver fila de emprego, eu entro para fazer ficha." Nada.
Ele caminha em direção à Ponte do Limão, começa o caminho de volta para casa. "Às vezes desanima, viu? A gente anda, anda, e não acontece nada", diz. "Eu fico triste, mas tento ficar triste por dentro. Não demonstro nada para ninguém", acredita. "É mentira. Às vezes ele chora", conta a mulher.
Gilvan culpa "os políticos" por sua situação. "São uns lazarentos", diz. "Inventam solução para tudo. Menos para a Aids, o câncer e o desemprego." Gilvan gosta de ver jornal na TV e acompanhou o escândalo da CPI dos Bancos.
Ele diz que, se ganhasse R$ 1 bilhão, como ouviu dizer que aconteceu com alguns bancos, comprava uma boa casa em Taipas e dava R$ 50 mil para cada parente.
Às 11h40, ele pega o ônibus de volta para casa. Às 13h, chega em casa. Com a caneta pendurada na camiseta e, no bolso, a carteira de trabalho, um maço de cigarro e R$ 3,75.


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