São Paulo, quinta-feira, 16 de agosto de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA

Uma cobaia chamada Argentina

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

"A Argentina não será cobaia de experimentos intelectuais que são sugeridos no exterior, inclusive desde os Estados Unidos", desabafou anteontem Domingo Cavallo. O ministro argentino estava se referindo aparentemente a propostas de desvalorização do peso, dolarização da economia e reestruturação forçada da dívida.
Bem. O próprio Cavallo foi um dos que mais se esmeraram em tratar a Argentina como cobaia. Há dez anos, como ministro do governo Menem, implantou um modelo monetário e cambial absurdamente rígido e anacrônico, que está na raiz da grave crise atual.
Mas não vamos chorar mais sobre leite derramado. O desabafo de Cavallo reflete problemas que têm recebido pouca atenção aqui no Brasil. Refiro-me, em especial, ao conflito de interesses entre Washington e Wall Street ou, mais amplamente, entre o setor financeiro oficial (governos dos países desenvolvidos, o FMI e outras entidades multilaterais sediadas em Washington) e as instituições financeiras privadas.
Em poucas palavras, a disputa é em torno do seguinte: quem vai arcar com o ônus de um novo socorro à Argentina? Nos anos recentes, e especialmente depois da posse do governo republicano nos EUA, aumentou bastante a resistência às operações financeiras de emergência coordenadas pelo FMI.
Essas operações são vistas, cada vez mais, como a utilização de recursos dos contribuintes dos países desenvolvidos para salvar a pele de investidores que apostaram alto em "mercados emergentes", lucraram fartamente e, na hora da aperto, querem socializar prejuízos. Argumenta-se, também, que a multiplicação de pacotes de emergência desde 1995, envolvendo somas expressivas e muitos países (México, Tailândia, Indonésia, Coréia do Sul, Rússia, Brasil, Turquia, Argentina, para citar os mais importantes), cria um problema de "moral hazard" (risco moral). A expectativa de socorro oficial em caso de crise estaria estimulando os países "emergentes" e, sobretudo, os credores e investidores privados a adotar comportamentos excessivamente arriscados.
Um documento recente do FMI discute essa questão de forma bastante franca ("Resolving and Preventing Financial Crises: The Role of The Private Sector", março de 2001, www.imf.org). Nesse documento, o "staff" do FMI observou que as instituições oficiais não terão recursos para arcar com o ônus total de futuras crises financeiras. "Se esforços para chegar a um acordo sobre uma abordagem voluntária não forem bem-sucedidos, os credores privados talvez tenham que aceitar alguma restrição às suas demandas imediatas de repagamento e absorver algumas perdas", comenta o documento.
Desde a década de 80, houve uma mudança significativa na composição dos fluxos internacionais de capital. O volume de títulos emitidos por países em desenvolvimento como o Brasil cresceu muito mais rapidamente do que os empréstimos bancários sindicalizados, que estiveram no centro da "reciclagem dos petrodólares" nos anos 70 e da crise da dívida externa dos 80. Os credores privados externos tornaram-se, assim, mais numerosos, mais anônimos e mais difíceis de coordenar, lembra o documento do FMI. Por esses motivos, muitos analistas, inclusive aqui no Brasil, concluíam que a reestruturação das dívidas de países "emergentes" tornara-se impraticável.
No entanto, comenta o "staff" do FMI, "a experiência recente com a reestruturação de dívidas em títulos tem sido menos difícil do que muitos esperavam", como se depreende da renegociação das dívidas da Ucrânia, do Paquistão e do Equador em 2000.
Em Wall Street, cresce a desagradável sensação de que a Argentina possa estar sendo estimulada por Washington a seguir o mesmo caminho.
É uma solução para a Argentina? Pode ser. Mas com uma condição fundamental: que a renegociação da dívida não seja utilizada para dar uma sobrevida ao modelo monetário e cambial criado por Cavallo em 1991 ou, como aconteceu no Equador, para amparar a dolarização plena da economia.


Paulo Nogueira Batista Jr., 46, economista e professor da Fundação Getúlio Vargas-SP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela é..." (Boitempo Editorial, 2ª edição: 2001).

E-mail: pnbjr@attglobal.net



Texto Anterior: Dados também surpreendem o governo
Próximo Texto: Vizinho em crise: FMI e G-7 avaliam apoio à Argentina
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.