|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OPINIÃO ECONÔMICA
Uma cobaia chamada Argentina
PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.
"A Argentina não será cobaia de experimentos intelectuais que são sugeridos no
exterior, inclusive desde os Estados Unidos", desabafou anteontem Domingo Cavallo. O ministro
argentino estava se referindo
aparentemente a propostas de
desvalorização do peso, dolarização da economia e reestruturação
forçada da dívida.
Bem. O próprio Cavallo foi um
dos que mais se esmeraram em
tratar a Argentina como cobaia.
Há dez anos, como ministro do
governo Menem, implantou um
modelo monetário e cambial absurdamente rígido e anacrônico,
que está na raiz da grave crise
atual.
Mas não vamos chorar mais sobre leite derramado. O desabafo
de Cavallo reflete problemas que
têm recebido pouca atenção aqui
no Brasil. Refiro-me, em especial,
ao conflito de interesses entre
Washington e Wall Street ou,
mais amplamente, entre o setor
financeiro oficial (governos dos
países desenvolvidos, o FMI e outras entidades multilaterais sediadas em Washington) e as instituições financeiras privadas.
Em poucas palavras, a disputa é
em torno do seguinte: quem vai
arcar com o ônus de um novo socorro à Argentina? Nos anos recentes, e especialmente depois da
posse do governo republicano nos
EUA, aumentou bastante a resistência às operações financeiras de
emergência coordenadas pelo
FMI.
Essas operações são vistas, cada
vez mais, como a utilização de recursos dos contribuintes dos países desenvolvidos para salvar a
pele de investidores que apostaram alto em "mercados emergentes", lucraram fartamente e, na
hora da aperto, querem socializar
prejuízos. Argumenta-se, também, que a multiplicação de pacotes de emergência desde 1995,
envolvendo somas expressivas e
muitos países (México, Tailândia,
Indonésia, Coréia do Sul, Rússia,
Brasil, Turquia, Argentina, para
citar os mais importantes), cria
um problema de "moral hazard"
(risco moral). A expectativa de socorro oficial em caso de crise estaria estimulando os países "emergentes" e, sobretudo, os credores e
investidores privados a adotar
comportamentos excessivamente
arriscados.
Um documento recente do FMI
discute essa questão de forma
bastante franca ("Resolving and
Preventing Financial Crises: The
Role of The Private Sector", março de 2001, www.imf.org). Nesse
documento, o "staff" do FMI observou que as instituições oficiais
não terão recursos para arcar
com o ônus total de futuras crises
financeiras. "Se esforços para chegar a um acordo sobre uma abordagem voluntária não forem
bem-sucedidos, os credores privados talvez tenham que aceitar alguma restrição às suas demandas
imediatas de repagamento e absorver algumas perdas", comenta
o documento.
Desde a década de 80, houve
uma mudança significativa na
composição dos fluxos internacionais de capital. O volume de títulos emitidos por países em desenvolvimento como o Brasil cresceu
muito mais rapidamente do que
os empréstimos bancários sindicalizados, que estiveram no centro da "reciclagem dos petrodólares" nos anos 70 e da crise da dívida externa dos 80. Os credores
privados externos tornaram-se,
assim, mais numerosos, mais
anônimos e mais difíceis de coordenar, lembra o documento do
FMI. Por esses motivos, muitos
analistas, inclusive aqui no Brasil, concluíam que a reestruturação das dívidas de países "emergentes" tornara-se impraticável.
No entanto, comenta o "staff"
do FMI, "a experiência recente
com a reestruturação de dívidas
em títulos tem sido menos difícil
do que muitos esperavam", como
se depreende da renegociação das
dívidas da Ucrânia, do Paquistão
e do Equador em 2000.
Em Wall Street, cresce a desagradável sensação de que a Argentina possa estar sendo estimulada por Washington a seguir o
mesmo caminho.
É uma solução para a Argentina? Pode ser. Mas com uma condição fundamental: que a renegociação da dívida não seja utilizada para dar uma sobrevida ao
modelo monetário e cambial
criado por Cavallo em 1991 ou,
como aconteceu no Equador, para amparar a dolarização plena
da economia.
Paulo Nogueira Batista Jr., 46, economista e professor da Fundação Getúlio
Vargas-SP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia
como Ela é..." (Boitempo Editorial, 2ª edição: 2001).
E-mail: pnbjr@attglobal.net
Texto Anterior: Dados também surpreendem o governo Próximo Texto: Vizinho em crise: FMI e G-7 avaliam apoio à Argentina Índice
|