São Paulo, quinta-feira, 17 de outubro de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

Cada um por si e Deus contra todos

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

O forte aumento da taxa de juro básica, decidido em reunião extraordinária do Comitê de Política Monetária do Banco Central, no início desta semana, foi recebido com perplexidade e descontentamento. A economia brasileira já estava basicamente estagnada e correndo o risco de entrar em recessão. Com essa alta dos juros básicos, aliada à decisão do final da semana passada de ampliar os recolhimentos compulsórios sobre depósitos bancários, aumenta evidentemente o risco de recessão.
Além disso, como a maior parte da dívida pública é de curto prazo ou referenciada à taxa básica de juro, a alta dessa última contamina rapidamente as finanças do governo, contribuindo para fomentar desconfianças quanto à sua capacidade de administrar e pagar suas dívidas.
Com taxa de juro mais alta do que o esperado, crescimento da economia abaixo do esperado e dólar acima do esperado, torna-se muito provável que o FMI venha a exigir um aumento do superávit primário das contas públicas. Se isso se confirmar, teremos chegado, em certo sentido, ao pior dos mundos: com a economia estagnada, ameaçada de recessão, o governo é levado a praticar políticas monetária e fiscal perversas, de caráter pró-cíclico, reforçando a tendência recessiva. Em condições normais, a ameaça de recessão recomendaria, em princípio, exatamente o contrário: um abrandamento das políticas monetária e fiscal.
Infelizmente, um país em desenvolvimento que pratica o tipo de política econômica que o Brasil praticou nos últimos oito anos, que se envolve até a alma com o hospício em autogestão conhecido impropriamente como "sistema financeiro internacional", perde o direito de adotar políticas econômicas normais.
Agora, nas eleições, os brasileiros estão indicando, de maneira avassaladora, o seu desejo de mudar a orientação da economia. Na prática, isso significa reduzir a dependência em relação a capitais externos e desengajar-se em alguma medida dos mercados financeiros internacionais.
Pequeno problema: como lembrou um ex-ministro da Fazenda do Brasil, em debate recente na Unctad, em Genebra, desengajar-se dos mercados financeiros internacionais é um pouco como pedir demissão da Máfia...
Neste início do século 21, as finanças internacionais alcançaram uma dimensão, uma velocidade e uma sofisticação sem precedentes. Como costumava dizer Rudiger Dornbusch, os mercados financeiros privados são, mais do que nunca, "trigger happy and unforgiving" ("rápidos no gatilho e inclementes"). Já demonstraram, diversas vezes, a sua capacidade de desestabilizar economias inteiras, inclusive algumas de certo porte, como a Rússia, a Coréia do Sul e o Brasil.
Há um enorme descompasso entre a "globalização" financeira privada e as instituições públicas internacionais. Não se desenvolveu, no âmbito mundial, uma rede de segurança e regulamentação financeira sequer remotamente comparável às que existem no plano nacional desde a Grande Depressão dos anos 30 do século passado.
No campo internacional, mercados financeiros do século 21 coexistem com instituições públicas do século 19. Não existe (e não está em discussão) uma regulamentação global dos fluxos voláteis de capital. Não existe (e também não está em discussão) um banco central mundial. A principal autoridade monetária internacional, o FMI, é relativamente pequena em comparação com os fluxos financeiros privados e exerce muito precariamente a função de emprestadora internacional de última instância.
Em suma, "é cada um por si e Deus contra todos", como diria Glauber Rocha. Nesse ambiente, países como o Brasil não podem trabalhar "alavancados", com alto grau de endividamento e exposição financeira elevada. Temos que manter déficits reduzidos no balanço de pagamentos em conta corrente, controlar os movimentos de capital em âmbito nacional, administrar o perfil da dívida externa e manter reservas internacionais elevadas.
É a árdua tarefa que o próximo governo terá de enfrentar.


Paulo Nogueira Batista Jr., 47, economista, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-SP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).

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