São Paulo, quinta-feira, 17 de outubro de 2002

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ARTIGO

A hipocrisia por trás da nossa compaixão

GUY VERHOFSTADT

No momento em que o mundo inteiro tem os olhos voltados para a evolução da crise iraquiana, desapareceram dos órgãos de informação outras questões urgentes. Alguém se lembra ainda das calorosas polêmicas que opuseram globalistas e antiglobalistas há apenas um ano? Será que a pobreza como tema de discussão saiu de moda?
Não se tratava da questão do século? A de como evitar uma luta de classes violenta entre os mais pobres e os mais ricos deste mundo? Entre 2 bilhões de pessoas que tentam diariamente sobreviver numa luta contra a fome e a doença e meio bilhão de pessoas cuja principal preocupação é desvendar a intriga da telenovela quotidiana? A diferença de rendimentos atual entre os dois é, em média, de um para trinta. O problema é que esta diferença não tende a diminuir, mas a aumentar.
Entre os dois grupos vivem cerca de 3 bilhões de pessoas, que também se beneficiaram dos efeitos da globalização. Povos, principalmente na Ásia, que no espaço de uma só geração se libertaram da luta quotidiana que travavam para viver. Eles são a prova de que a globalização, o mercado e o comércio livre são o melhor método -o único com provas dadas- para vencer a pobreza.
Mas os 2 bilhões de pessoas que vivem na mais extrema pobreza demonstram que o comércio livre e a globalização por si só não bastam. Deveríamos sabê-lo, na União Européia. Desde as primeiras fases da UE, ajudamos os novos Estados-membros a extirparem-se das malhas do empobrecimento (coisa que vamos tentar durante esta década na Europa Central e Oriental). Fizemo-lo no âmbito da economia de mercado, mas contamos com uma colaboração intensa, com ajuda financeira e, sobretudo, com a participação dos países interessados.
Paremos, portanto, de passar de uma megaconferência para outra, em Monterrey, em Roma ou em Joanesburgo. Precisamos de um consenso para um desenvolvimento mais sustentável e de um consenso que conduza a esforços mais intensos, tanto dos europeus como dos norte-americanos, no interesse de cada um.
A evolução verificada na OMC (Organização Mundial do Comércio) no ano passado em Doha rumo ao comércio livre e a um maior desenvolvimento foi promissora. Mas não devemos esperar pela OMC.
Atualmente, já podemos efetuar mais comércio livre. A iniciativa européia de fevereiro de 2001, chamada "Tudo menos Armas", constituiu uma etapa importante ao conceder a 48 países menos desenvolvidos um acesso ao mercado europeu sem direitos aduaneiros nem quotas de entrada. Mas não será hipócrita excluir em grande parte até 2006 e 2009 deste livre acesso ao nosso mercado precisamente os produtos agrícolas mais importantes para muitos países emergentes tais como a banana, o arroz e o açúcar?
O fato desta medida européia não ser aplicada a uma série de países em desenvolvimento não constitui um dado significativo? Não é desolador constatar que esta iniciativa européia foi muito pouco seguida por outras potências comerciais prósperas? Onde estão os EUA que, face à problemática da globalização, parecem distanciar-se cada vez mais?
Devemos fazer mais. A agricultura é a chave. Nos países em desenvolvimento, cerca de 70% da população vive da agricultura. Nas nações ricas do norte, este número raramente ultrapassa 5%. Para bilhões de pessoas a sobrevivência depende da produção agrícola. No entanto, os membros da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico -órgão que congrega as nações mais ricas do planeta] ainda aplicam aos produtos agrícolas direitos à importação que chegam, em média, a 40%.
Mas há mais. As subvenções -que permitiram à Europa eliminar os seus próprios déficits alimentares- expulsam hoje os agricultores das suas terras nos países emergentes. A produção de açúcar na Europa fica duas vezes mais cara do que na África do Sul. No entanto, é o açúcar europeu que se sobrepõe à produção local. Nos últimos cinco anos, a produção de leite na Jamaica diminuiu um terço devido à importação de leite em pó europeu.
Apesar das reformas, as explorações agrícolas e os agricultores europeus continuam a se beneficiar de subvenções que permitem a eles eliminar do mercado os seus concorrentes mais pobres. A Europa dá anualmente 120 milhões à África do Sul, à título de ajuda ao desenvolvimento do país. Mas a descarga maciça de açúcar europeu no seu mercado leva o país a uma perda anual de cerca de 100 milhões em receitas potenciais de exportação. Nós, europeus, combatemos a pobreza com uma mão e permitimos que ela se mantenha com a outra. Atenuamos a miséria, sim, mas também permitimos que ela perdure.
Alguns países pobres tentam fugir da miséria rural, investindo, por exemplo, na produção de têxteis e de vestuário. Mas o comércio destes produtos também está entravado por impostos à importação aplicados pelas nações ricas industrializadas. E é o consumidor europeu e o operário asiático ou africano quem paga o preço.
Os países mais pobres necessitam de mais dinheiro. O dinheiro pode resultar de uma operação de alívio da dívida. Reforçar a iniciativa PPME (Países Pobres Muito Endividados), que liga o alívio da dívida a um programa de redução da pobreza e de reformas econômicas, é um passo na boa direção. Além disso, a execução da iniciativa poderia ser acelerada desde que estivesse ligada aos esforços empreendidos em favor de um aumento da ajuda ao desenvolvimento. E por que não reunir o conjunto dos credores multilaterais, bilaterais e privados no fundo PPME e ligá-los mais solidamente aos Objetivos de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas para o Milênio?
O dinheiro pode vir igualmente de um aumento da ajuda ao desenvolvimento. Em 1990, a média da ajuda concedida pelos países ricos ocidentais foi de US$ 32 por cada africano. Atualmente, esse montante foi reduzido quase pela metade quando deveria ter sido duplicado. Mas há condições a respeitar. É necessário atingir um nível de eficácia mais elevado em matéria de ajuda ao desenvolvimento, a começar pela União Européia. As organizações não governamentais sofrem com a burocratização. Os meios de funcionamento internos absorvem uma parte importante dos fundos. O paternalismo é muitas vezes a característica das ONGs e autoridades ocidentais responsáveis pela cooperação, assumindo, por vezes, parte do papel do governo dos países pobres, quando o essencial é a emancipação da população para chegar ao desenvolvimento e à prosperidade.
É por isso que devemos ousar dar mais voz aos países pobres. Eles formulam as suas necessidades com insistência mas nem sempre são ouvidos. A minha proposta para uma estrutura de autoridade política internacional, baseada nas relações continentais de cooperação, permite que a voz dos continentes mais pobres pese mais do que no passado. De nossa parte, poderíamos desenvolver na Europa uma cooperação mais intensa com a União Africana, principalmente com base na chamada "Nova Parceria para o Desenvolvimento da África", que engloba o conjunto dos elementos do novo consenso de desenvolvimento.
A pobreza no mundo requer uma abordagem comum. A linha a seguir -comércio livre, mas não apenas comércio livre- já foi abandonada há muito tempo. Chegou a hora de agir e de intervir nas áreas em que o comércio livre disfarça mal as suas fraquezas. É o desafio que teremos de vencer. No nosso próprio interesse.


Guy Verhofstadt é o primeiro-ministro da Bélgica e ocupou, em 2001, a presidência do Conselho Europeu, guy.verhofstadt@globalisationdebate.be

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