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ARTIGO
A hipocrisia por trás da nossa compaixão
GUY VERHOFSTADT
No momento em que o
mundo inteiro tem os
olhos voltados para a evolução da
crise iraquiana, desapareceram
dos órgãos de informação outras
questões urgentes. Alguém se
lembra ainda das calorosas polêmicas que opuseram globalistas e
antiglobalistas há apenas um ano?
Será que a pobreza como tema de
discussão saiu de moda?
Não se tratava da questão do século? A de como evitar uma luta
de classes violenta entre os mais
pobres e os mais ricos deste mundo? Entre 2 bilhões de pessoas que
tentam diariamente sobreviver
numa luta contra a fome e a doença e meio bilhão de pessoas cuja
principal preocupação é desvendar a intriga da telenovela quotidiana? A diferença de rendimentos atual entre os dois é, em média, de um para trinta. O problema é que esta diferença não tende
a diminuir, mas a aumentar.
Entre os dois grupos vivem cerca de 3 bilhões de pessoas, que
também se beneficiaram dos efeitos da globalização. Povos, principalmente na Ásia, que no espaço
de uma só geração se libertaram
da luta quotidiana que travavam
para viver. Eles são a prova de que
a globalização, o mercado e o comércio livre são o melhor método
-o único com provas dadas-
para vencer a pobreza.
Mas os 2 bilhões de pessoas que
vivem na mais extrema pobreza
demonstram que o comércio livre
e a globalização por si só não bastam. Deveríamos sabê-lo, na
União Européia. Desde as primeiras fases da UE, ajudamos os novos Estados-membros a extirparem-se das malhas do empobrecimento (coisa que vamos tentar
durante esta década na Europa
Central e Oriental). Fizemo-lo no
âmbito da economia de mercado,
mas contamos com uma colaboração intensa, com ajuda financeira e, sobretudo, com a participação dos países interessados.
Paremos, portanto, de passar de
uma megaconferência para outra,
em Monterrey, em Roma ou em
Joanesburgo. Precisamos de um
consenso para um desenvolvimento mais sustentável e de um
consenso que conduza a esforços
mais intensos, tanto dos europeus
como dos norte-americanos, no
interesse de cada um.
A evolução verificada na OMC
(Organização Mundial do Comércio) no ano passado em Doha
rumo ao comércio livre e a um
maior desenvolvimento foi promissora. Mas não devemos esperar pela OMC.
Atualmente, já podemos efetuar
mais comércio livre. A iniciativa
européia de fevereiro de 2001,
chamada "Tudo menos Armas",
constituiu uma etapa importante
ao conceder a 48 países menos desenvolvidos um acesso ao mercado europeu sem direitos aduaneiros nem quotas de entrada. Mas
não será hipócrita excluir em
grande parte até 2006 e 2009 deste
livre acesso ao nosso mercado
precisamente os produtos agrícolas mais importantes para muitos
países emergentes tais como a banana, o arroz e o açúcar?
O fato desta medida européia
não ser aplicada a uma série de
países em desenvolvimento não
constitui um dado significativo?
Não é desolador constatar que esta iniciativa européia foi muito
pouco seguida por outras potências comerciais prósperas? Onde
estão os EUA que, face à problemática da globalização, parecem
distanciar-se cada vez mais?
Devemos fazer mais. A agricultura é a chave. Nos países em desenvolvimento, cerca de 70% da
população vive da agricultura.
Nas nações ricas do norte, este
número raramente ultrapassa
5%. Para bilhões de pessoas a sobrevivência depende da produção
agrícola. No entanto, os membros
da OCDE [Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento
Econômico -órgão que congrega as nações mais ricas do planeta] ainda aplicam aos produtos
agrícolas direitos à importação
que chegam, em média, a 40%.
Mas há mais. As subvenções
-que permitiram à Europa eliminar os seus próprios déficits
alimentares- expulsam hoje os
agricultores das suas terras nos
países emergentes. A produção de
açúcar na Europa fica duas vezes
mais cara do que na África do Sul.
No entanto, é o açúcar europeu
que se sobrepõe à produção local.
Nos últimos cinco anos, a produção de leite na Jamaica diminuiu
um terço devido à importação de
leite em pó europeu.
Apesar das reformas, as explorações agrícolas e os agricultores
europeus continuam a se beneficiar de subvenções que permitem
a eles eliminar do mercado os
seus concorrentes mais pobres. A
Europa dá anualmente 120 milhões à África do Sul, à título de
ajuda ao desenvolvimento do
país. Mas a descarga maciça de
açúcar europeu no seu mercado
leva o país a uma perda anual de
cerca de 100 milhões em receitas potenciais de exportação. Nós,
europeus, combatemos a pobreza
com uma mão e permitimos que
ela se mantenha com a outra. Atenuamos a miséria, sim, mas também permitimos que ela perdure.
Alguns países pobres tentam fugir da miséria rural, investindo,
por exemplo, na produção de têxteis e de vestuário. Mas o comércio destes produtos também está
entravado por impostos à importação aplicados pelas nações ricas
industrializadas. E é o consumidor europeu e o operário asiático
ou africano quem paga o preço.
Os países mais pobres necessitam de mais dinheiro. O dinheiro
pode resultar de uma operação de
alívio da dívida. Reforçar a iniciativa PPME (Países Pobres Muito
Endividados), que liga o alívio da
dívida a um programa de redução
da pobreza e de reformas econômicas, é um passo na boa direção.
Além disso, a execução da iniciativa poderia ser acelerada desde
que estivesse ligada aos esforços
empreendidos em favor de um
aumento da ajuda ao desenvolvimento. E por que não reunir o
conjunto dos credores multilaterais, bilaterais e privados no fundo PPME e ligá-los mais solidamente aos Objetivos de Desenvolvimento Humano das Nações
Unidas para o Milênio?
O dinheiro pode vir igualmente
de um aumento da ajuda ao desenvolvimento. Em 1990, a média
da ajuda concedida pelos países
ricos ocidentais foi de US$ 32 por
cada africano. Atualmente, esse
montante foi reduzido quase pela
metade quando deveria ter sido
duplicado. Mas há condições a
respeitar. É necessário atingir um
nível de eficácia mais elevado em
matéria de ajuda ao desenvolvimento, a começar pela União Européia. As organizações não governamentais sofrem com a burocratização. Os meios de funcionamento internos absorvem uma
parte importante dos fundos. O
paternalismo é muitas vezes a característica das ONGs e autoridades ocidentais responsáveis pela
cooperação, assumindo, por vezes, parte do papel do governo
dos países pobres, quando o essencial é a emancipação da população para chegar ao desenvolvimento e à prosperidade.
É por isso que devemos ousar
dar mais voz aos países pobres.
Eles formulam as suas necessidades com insistência mas nem
sempre são ouvidos. A minha
proposta para uma estrutura de
autoridade política internacional,
baseada nas relações continentais
de cooperação, permite que a voz
dos continentes mais pobres pese
mais do que no passado. De nossa
parte, poderíamos desenvolver na
Europa uma cooperação mais intensa com a União Africana, principalmente com base na chamada
"Nova Parceria para o Desenvolvimento da África", que engloba o
conjunto dos elementos do novo
consenso de desenvolvimento.
A pobreza no mundo requer
uma abordagem comum. A linha
a seguir -comércio livre, mas
não apenas comércio livre- já foi
abandonada há muito tempo.
Chegou a hora de agir e de intervir
nas áreas em que o comércio livre
disfarça mal as suas fraquezas. É o
desafio que teremos de vencer.
No nosso próprio interesse.
Guy Verhofstadt é o primeiro-ministro
da Bélgica e ocupou, em 2001, a presidência do Conselho Europeu,
guy.verhofstadt@globalisationdebate.be
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