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OPINIÃO ECONÔMICA
O incidente Cofins
MARCOS CINTRA
Não me recordo de pacote tributário que tenha mobilizado tanta oposição quanto a medida provisória 135/03, que criou a
Cofins não-cumulativa. Há quase
unanimidade contrária a ela. Até
mesmo aqueles que teoricamente
são beneficiados pela mudança
estão sendo levados pela onda de
inconformismo e insatisfação
com a alteração operacional da
Cofins e com a ameaça de aumento da carga tributária global
implícita naquela providência.
Em realidade, o incidente Cofins é sintomático de um novo clima que vem presidindo os debates da reforma tributária. O que
deveria ser uma cruzada de toda
a sociedade para a criação de um
sistema de arrecadação de impostos capaz de sustentar a retomada do crescimento econômico
brasileiro acabou sendo transformada numa luta fratricida, em
um salve-se-quem-puder. Em vez
de lutar por um sistema que coloque toda a sociedade em um patamar superior de eficiência e
equidade, o debate se transformou em disputa distributiva e na
explosão de conflitos de interesses. A participação dos representantes dos três níveis de governo
no debate se resumiu a uma triste
corrida pela apropriação de parcelas do bolo tributário nacional.
Nessa disputa, o grande ausente
é o contribuinte, o pagador de impostos, ainda que certamente caberá a ele ser o grande financiador desse espetáculo de fisiologismo explícito proporcionado pelas
autoridades políticas e econômicas.
Nesse festival de autêntico descaso com o cidadão comum, surge
ainda a curiosa presença do FMI,
que em seu acordo com o governo
brasileiro se imiscui em assuntos
de política econômica interna,
exigindo, sabe-se lá para atender
a que interesses, a alteração do
PIS/Cofins, transformando-os em
tributos não-cumulativos.
No apagar das luzes do governo
anterior, a promessa fora parcialmente cumprida com a reforma
do PIS, que tantos prejuízos vem
causando ao setor produtivo nacional e que agora se completa
com a inesperada e surpreendente extensão à Cofins. Atende-se
assim integralmente aos caprichos dos técnicos daquele organismo internacional presentes no
país para a renegociação do acordo. Trata-se de imposição de um
significativo aumento da carga
tributária global e, sobretudo, de
um novo e insuportável encargo
aos setores prestadores de serviços, que detinham, injustamente,
a fama de pagar menos impostos
que os demais setores produtivos
brasileiros. Essa tese, por sinal, foi
totalmente refutada em recente
estudo da Fundação Getúlio Vargas, patrocinado pela Fesesp (Federação dos Serviços do Estado de
São Paulo) e disponível em
www.marcoscintra.org/
padrao.asp?id=258. O setor de
serviços, incluindo comércio e
transportes, arrecada mais impostos que a indústria. Em relação ao PIB de cada setor, os tributos oneram os prestadores de serviços em 32%, o comércio, em
37%, e a indústria de transformação, em 31%.
Cumpre dizer que não tenho o
menor apreço pelo antigo PIS-Cofins. Tal desagrado nada tem a
ver com a sua antiga cumulatividade, característica que vem sendo combatida com fúria injustificável pelos economistas alinhados com os modelos tributários
convencionais. Esse ódio cego
transformou-se em palavra de ordem, em chavão trazido à discussão sobre a reforma tributária,
ainda que, paradoxalmente, os
mesmos cruzados da fé convencional não se cansem de elogiar
sistemáticas de arrecadação
igualmente cumulativas, como o
Simples, o IR sobre lucro presumido, os impostos sobre valor agregado (IPI ou ICMS) cobrados de
forma monofásica ou até sobre a
facilidade do pagamento do
ICMS sobre faturamento estimado.
Minha discordância com os tributos sobre faturamento não se
encontra em sua cumulatividade,
mas em sua fragilidade arrecadatória, por terem como fato gerador uma base declaratória como
o faturamento das empresas, passível de enorme evasão.
Vale acrescentar que o modismo anticumulatividade e o fanatismo pró-valor agregado deverão
fazer com que a emissão de uma
inocente nota fiscal submeta uma
empresa a uma incidência tributária superior a 40% do seu valor
(17% de ICMS, 10% de IPI, 1,65%
de PIS, 7,6% de Cofins e mais uns
5% se vingar a proposta constante no projeto de reforma tributária de substituir parte dos encargos sobre folha de salários por
uma incidência "não-cumulativa" sobre faturamento). Nessas
circunstâncias, é evidente que aumenta o prêmio ao sonegador, induzindo-o de forma quase irresistível a subfaturar, a ingressar no
mundo da informalidade, a se
atolar na economia subterrânea.
Mais surpreendente ainda são
as propostas que defendem a criação de um grande IVA nacional,
que englobe, adicionalmente, a
base tributária do ISS, ou seja, a
prestação de serviços. Dirão os defensores da ortodoxia tributária
que haverá créditos e que a não-cumulatividade atenuará o impacto das altas alíquotas na formação dos preços.
Mas de que créditos tributários
se valerão os prestadores de serviços cuja maior parcela de custos
de produção se concentra no pagamento de salários que não geram créditos tributários? Como
justificar o aumento de preços nas
importações, a elevação dos impostos nos rendimentos financeiros, o estímulo ao endividamento
das empresas ou as distorções alocativas geradas pela punição na
contratação de mão-de-obra direta? Como explicar essa brutal
discriminação contra o setor terciário, justamente o que mais
cresce no mundo moderno, o que
mais gera empregos e o que mais
paga salários?
O grande desafio na questão fiscal é libertar a doutrina tributária dos dogmas ultrapassados da
economia manufatureira típica
dos dois últimos séculos de história econômica. A economia moderna é diferente. A globalização
exige mecanismos tributários
imunes à enorme fluidez de capitais e de riqueza que geram a felicidade dos paraísos fiscais, internos e externos, e que têm mostrado enorme competência para explorar, em benefício próprio, as
contradições entre o sistema tributário convencional e os caminhos do mundo eletrônico, global,
típicos da era moderna.
Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque, 58, doutor pela Universidade
Harvard, professor titular e vice-presidente da FGV, é secretário das Finanças
de São Bernardo do Campo e autor de "A
verdade sobre o Imposto Único" (LCTE,
2003). Escreve às segundas-feiras, a cada
15 dias, nesta coluna.
Internet: www.marcoscintra.org
E-mail -
mcintra@marcoscintra.org
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