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São Paulo, segunda-feira, 17 de novembro de 2003

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HA-JOON CHANG

Coreano Ha-Joon Chang, da Universidade de Cambridge, diz que, a longo prazo, país perde com o bloco

Para especialista, Alca tende a destruir indústria brasileira

CLÁUDIA TREVISAN
DA REPORTAGEM LOCAL

Professor da faculdade de economia e política da Universidade de Cambridge, o coreano Ha-Joon Chang, 40, não é apenas um crítico das negociações comerciais que ocorrem no âmbito da OMC (Organização Mundial do Comércio) e da Alca (Área de Livre Comércio das Américas).
Para ele, os países desenvolvidos atuam nessas duas arenas com boa dose de cinismo, ao pretender tirar das mãos dos países em desenvolvimento as mesmas armas que usaram em sua própria trajetória de crescimento econômico: subsídios, proteção à indústria local e desrespeito à propriedade intelectual.
Essa é a principal tese de seu livro "Kicking Away the Ladder" (Chutando a Escada), que deverá ser lançado neste ano no Brasil pela editora Unesp. Especialista em desenvolvimento e autor de obras sobre temas como política industrial, papel do Estado na economia e globalização, Ha-Joon esteve no Brasil na semana passada para participar de seminários no Rio e em São Paulo.
O professor acha que o Brasil deveria rejeitar a Alca, pois o país é o único que tende a perder com a implantação de uma zona de livre comércio na região. "Sua indústria seria destruída", afirmou. "Se você é El Salvador ou Equador, não tem muito a perder. São países que não têm uma indústria, de qualquer maneira. Mas o Brasil tem muitas potencialidades que podem ser destruídas. Vocês podem ganhar no curto prazo com mais acesso ao mercado agrícola, mas, e a longo prazo?"
O professor também tem análises preocupantes sobre a economia brasileira, apesar da euforia dos mercados com relação à política econômica do governo Lula. "Se olharmos para outros países, a média de lucro na indústria manufatureira é de 4% a 5%. Com taxa de juros reais entre 10% e 12%, ninguém vai querer ter negócios. É mais fácil comprar um monte de títulos do governo."
A seguir, trechos da entrevista que concedeu à Folha:
 

Folha - As negociações na OMC (Organização Mundial do Comércio) podem avançar depois do que ocorreu em Cancún?
Ha-Joon -
A menos que os países desenvolvidos mudem sua postura, as negociações vão morrer. Eles estão tentando forçar os países em desenvolvimento a aceitar coisas que são fundamentalmente contrárias a seus interesses e, por isso, há fracassos sucessivos.
Seattle fracassou em 1999. O encontro ministerial seguinte, em Doha, em 2001, só não fracassou também por causa de Osama Bin Laden. Depois do 11 de Setembro havia uma grande simpatia em relação aos americanos. E os americanos diziam "se você é contra o livre mercado, você está com os terroristas".
Havia uma mistura de simpatia e medo, que levou os países em desenvolvimento a engolirem uma série de coisas, mas, em Cancún [que sediou a reunião da OMC em setembro], foi diferente. Não havia a mesma conjunção política, e os países em desenvolvimento disseram: "Por que vamos fazer isso? Esses caras estão prometendo muito pouco".
E não era nem mesmo promessa. Os países desenvolvidos continuam dizendo "nós vamos fazer o máximo para permitir acesso a mercado", mas sem fixar datas nem estabelecer metas. Ao mesmo tempo, dizem para os países em desenvolvimento que, em 2015, eles devem derrubar suas tarifas para o mesmo nível adotado nos países desenvolvidos, além de acabar com as regras que limitam investimentos estrangeiros.

Folha - O G22, grupo que reuniu países em desenvolvimento criado em Cancún, pode ter sucesso?
Ha-Joon -
Acho que o G22 é um fato muito importante na política internacional. Antes de Cancún, só a Índia resistia às pressões dos países desenvolvidos. Os americanos e os europeus podiam facilmente ignorar sua posição, dizendo que se tratava apenas de um só país apegado ao passado.
Mas dessa vez você tem a China, que acabou de entrar na OMC, e o Brasil com um novo governo, que tem uma atitude mais independente nas relações internacionais. Esses três países conseguiram formar uma nova aliança de países em desenvolvimento não vista desde a década de 70. Não creio que o novo grupo vá se desfazer.

Folha - Por quê?
Ha-Joon -
Porque agora você tem três grandes, importantes e independentes países trabalhando juntos, e isso é novo. A Índia sentia-se muito isolada no passado. Uma vez ou outra, a Índia e, às vezes, a Malásia faziam algum barulho, mas era difícil para esses países se organizarem.

Folha - Mas alguns países que integravam o G22, como Peru e Colômbia, deixaram o grupo em razão de pressões dos Estados Unidos. O poder de atração do mercado norte-americano não é grande o suficiente para desarticular esse tipo de organização dos países em desenvolvimento?
Ha-Joon -
Certamente é um fator importante. O grau de pressão que os países desenvolvidos podem exercer sobre os países em desenvolvimento é potencialmente muito grande. Não é só o acesso ao mercado norte-americano. Eles podem dizer a vários países que não vão dar mais dinheiro, por exemplo, de suas agências de ajuda. É muito difícil para os países em desenvolvimento suportarem essa pressão.
Mas o ponto é que eles estão sendo forçados a aceitar algo que é tão contrário aos seus interesses que até os países em desenvolvimento mais pobres são capazes de dizer não. Eles sabem que, se disserem sim para isso, é o fim.

Folha - Em sua opinião, qual deveria ser a postura do Brasil na negociação da Alca (Área de Livre Comércio das Américas), na qual não há China nem Índia para formação de um bloco que se contraponha aos Estados Unidos?
Ha-Joon -
A Alca sem o Brasil não teria sentido. O México já está no Nafta [área de livre comércio dos EUA, México e Canadá], então não muda muito para o país. No resto da América Latina, fora o México, o Brasil é a única economia relevante. Sem o Brasil, a Alca não tem significado. Por isso, o Brasil está em uma posição forte para dizer não. Se o Brasil diz "não", pode ser fácil reunir países mais fracos na Alca, mas não significaria muito.

Folha - Mas o Brasil não tem muito a perder em termos de acesso ao mercado norte-americano, que é o principal destino individual das exportações brasileiras?
Ha-Joon -
No curto prazo vocês podem ter benefícios, mas, a longo prazo, o melhor para o Brasil é não assinar a Alca.

Folha - Por quê?
Ha-Joon -
Porque a sua indústria seria destruída. O Brasil será o grande perdedor da Alca. Se você é El Salvador ou Equador, você não tem muito a perder. São países que não têm uma indústria, de qualquer maneira. Mas o Brasil tem muitas potencialidades que podem ser destruídas. Vocês podem ganhar no curto prazo com mais acesso ao mercado agrícola, mas, e a longo prazo?
As pessoas ficam falando de ineficiência e protecionismo à indústria. Mas é muito melhor ter uma indústria protegida do que nada.

Folha - O sr. é um estudioso e um entusiasta da adoção de políticas industriais. O governo brasileiro está tendo atuação satisfatória nessa área?
Ha-Joon -
É natural que o governo esteja mais interessado em temas macroeconômicos, porque são temas mais urgentes. Política industrial tem a ver mais com o longo prazo. Se você não investe em educação, não investe em pesquisa e desenvolvimento, você só vai sentir os efeitos depois de dez anos. O governo tende a se focar mais em problemas financeiros e macroeconômicos. Mas não é a coisa certa a fazer se considerarmos o longo prazo.
Pode funcionar por dois ou três anos, mas, em dez anos, vocês vão estar competindo com países que adotaram políticas industriais. Talvez em dez anos vocês estejam competindo com o Vietnã. Vietnã é hoje o segundo maior produtor de café do mundo e eles não produziam café.

Folha - Como o sr. vê a economia brasileira?
Ha-Joon - Bem, a taxa de juros real de vocês é de 10%, 12%. Talvez haja regras econômicas diferentes no Brasil, mas, se você olhar para outros países, a média de lucro na indústria manufatureira é de 4% a 5%. Se você mantém a taxa de juros reais entre 10% e 12% significa que ninguém vai querer ter negócios. É mais fácil comprar um monte de títulos do governo.
Matematicamente é impossível continuar nessa situação. Ou vocês reduzem a taxa de juros e aumentam a taxa de crescimento econômico -assim há mais lucros e pagamentos da Previdência e maior superávit fiscal- ou vocês terão de renegociar a dívida.

Folha - Qual é a opção que o sr. considera mais provável?
Ha-Joon -
No momento, acho que o governo brasileiro está com muito medo de fazer qualquer coisa que possa ofender os investidores. Eles vão tentar continuar os pagamentos da dívida e reduzir a taxa de juros. Mas, com a existência das restrições que o país enfrenta, eu não creio que possam fazer muito. Talvez possam trazer a taxa de juros real para 8%, mas não para menos.

Folha - O governo deveria tentar renegociar a dívida?
Ha-Joon -
Acho que deveria tentar tudo o que pode. A longo prazo é muito importante aumentar a capacidade de exportação, para reduzir essa restrição crônica do balanço de pagamentos. Mas isso exige investimentos, e aí você tem um problema do tipo "o ovo ou a galinha". Se você tem uma situação na qual não pode investir, como você investe para mudar essa situação no futuro? É uma coisa muito difícil.
Talvez tenha de haver uma combinação de alguma reestruturação de dívida, que possa ser feita de maneira mais organizada que a da Argentina, por exemplo, mais o esforço para aumentar as exportações, no curto a médio prazo, dando incentivos fiscais.
Eu fiquei chocado ao descobrir que o Brasil não tem uma agência estatal de exportações, como Japão e Coréia do Sul, por exemplo, têm. Essas agências dão suporte mercadológico a pequenos e médios exportadores. Se eles tivessem ajuda para alcançar clientes fora do Brasil haveria muito mais espaço para o aumento das exportações.
Sempre cito o contraste entre o café brasileiro e o colombiano. O Brasil é "o" país do café, mas os colombianos têm sido muito inteligentes em fazer um marketing intensivo de seu café. Se você vai para a Coréia e pergunta às pessoas, eles dirão que o café colombiano é o melhor.

Folha - Qual pode ser o impacto para o sistema multilateral de comércio se os EUA ignorarem a decisão da OMC que considerou irregulares as barreiras americanas à importação de aço?
Ha-Joon -
Os americanos sempre tiveram essa tendência ao unilateralismo. Quando as negociações da OMC em Cancún fracassaram eles disseram "bem, agora vamos nos focar em acordos bilaterais ou regionais".
Os americanos são bem capazes de ignorar decisões com as quais não concordam. Se isso acontecesse, em larga escala seria um grande problema, porque voltaríamos ao sistema da Liga das Nações posterior à 1ª Grande Guerra, que era uma organização da qual não participava o país mais forte. Por isso, se tornou sem sentido. Era um sistema internacional sem o país mais forte.
Se isso ocorre com a OMC haverá muita tensão, porque os outros países não têm o poder que os norte-americanos têm. Eles precisam da OMC para impor sua vontade, os americanos, não. Essa é a parte difícil, como mantê-los [os EUA] dentro da organização.


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