São Paulo, domingo, 18 de janeiro de 2004

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Dólar: força ou fraqueza?

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

Nas últimas semanas, a desvalorização do dólar em relação ao euro sofreu uma forte aceleração. O ímpeto da moeda européia recuou um pouco depois das declarações do presidente do Banco Central Europeu, Jean-Claude Trichet, que chamou a atenção para os riscos envolvidos na "excessiva e perigosa volatilidade das taxas de câmbio". Nos últimos 12 meses, o dólar sofreu uma desvalorização de 30% diante da moeda européia. Informações recentes mostram que os fluxos de capitais para os Estados Unidos vêm caindo desde meados de 2002, apesar da solidariedade compulsória dos países superavitários da Ásia que aplicam suas reservas em títulos americanos.
No mundo de hoje, em que predominam a globalização financeira, a securitização das dívidas e os derivativos, as avaliações diárias e quase instantâneas nos mercados secundários determinam os movimentos das taxas de câmbio e de juros. Esses dois preços fundamentais são formados, sobretudo, a partir das expectativas de valorização/desvalorização dos ativos denominados em moedas distintas.
As antecipações quanto aos movimentos dos diferenciais de juros e seus efeitos sobre alterações nas taxas de câmbio podem provocar mudanças nos preços dos ativos, da mesma forma que as mudanças "autônomas" nos preços dos ativos podem afetar as taxas de câmbio e as relações entre taxas de juros nas diferentes moedas.
Em um sistema de taxas flutuantes, ampla e rápida mobilidade de capitais e provimento de liquidez efetuada a partir do mercado, as taxas de juros e de câmbio se tornam "endógenas" e exprimem as mudanças de expectativas dos possuidores de riqueza.
Na segunda metade da década de 90, os Estados Unidos, mesmo com um déficit em conta corrente em ampliação, foram capazes de se beneficiar de uma forte revalorização de sua moeda (depois de uma queda pronunciada em 1995). A economia cresceu a taxas elevadas e as expectativas otimistas impulsionavam os preços dos ativos. Devido à sua capacidade de atrair recursos externos para os mercados de "securities" (ações e bônus públicos e privados), os americanos puderam se dar ao luxo de sustentar uma política monetária expansionista, apesar da acelerada ampliação do déficit em conta corrente. Ademais, as sucessivas crises das moedas e dos mercados financeiros na periferia incitaram a demanda por títulos do governo norte-americano, considerados de maior qualidade. O fluxo de capitais e os bons resultados fiscais do período de "alto crescimento" permitiram a manutenção das taxas de juros de longo prazo em níveis confortáveis.
A partir de 2001, a "correção de preços" nas Bolsas de Valores e a "recessão de crescimento" juntaram-se ao elevado déficit externo e à rápida inversão do resultado fiscal (de um superávit de US$ 200 bilhões para um déficit que se aproxima dos US$ 450 bilhões) para empurrar o dólar para baixo.
A visão convencional acredita que o aumento dos déficits gêmeos vai empurrar o dólar para níveis ainda mais baixos. Essa desvalorização, dizem, caso ocorra de forma rápida, deverá acelerar a saída dos ativos denominados na moeda americana, o que, por sua vez, vai acentuar a queda do dólar As taxas de juros de longo prazo vão começar a subir, tornando a curva de rendimentos mais inclinada, exigindo do Federal Reserve uma elevação das taxas curtas. Neste momento, não é seguro afirmar se estamos diante de uma tendência firme ou se, como de outras vezes, a moeda americana vai recuperar a sua força.
Desde o início dos anos 80, a política do dólar forte vem permitindo à economia americana retomar o crescimento sem pressões inflacionárias, com elevação dos salários reais e expansão da demanda nominal acima da renda corrente. Os Estados Unidos conseguem, simultaneamente, obter transferências de liquidez, de renda real e de capitais do resto do mundo. À elevação do déficit comercial corresponde uma tentativa de obtenção de saldos comerciais crescentes dos demais países industrializados.
O ciclo dos anos 90 comprovou a eficácia e o poder dessa forma de integração financeira e produtiva: a abertura das contas de capital do resto do mundo propiciou ao mercado financeiro dos Estados Unidos a oportunidade de comandar uma formidável expansão do crédito à produção e ao consumo. A alavancagem das famílias e das grandes empresas produtivas e o elevado endividamento do setor financeiro americano são a contrapartida do portentoso afluxo de capitais, mobilizado a partir das posições superavitárias em conta corrente acumuladas na Ásia e na Europa e das saídas de recursos dos países deficitários e devedores.
Exportar é a solução para todos, menos para a economia dominante, cuja solução é importar barato.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).


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