São Paulo, domingo, 18 de janeiro de 2004

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LUÍS NASSIF

O cantor de São Paulo

São Paulo tem suas melodias. Para a minha geração, os hinos de São Paulo são "Sampa", de Caetano Veloso, e "Ronda", de Paulo Vanzolini. Para a de minha mãe, "Lampião de Gás", de Zica Bergami. Para meu avô, o "Bonde Camarão", de Cornélio Pires. Para meus filhos, provavelmente o de Zé Rodrix, recém-composto.
Há o "Hino do Quarto Centenário", um dobrado do nível de John Phillip de Souza, de autoria de Garoto e Chiquinho do Acordeon, e ainda um outro hino de Mário Zan, que muitos confundem com o de Garoto.
Mas talvez a música mais bonita já composta para a cidade seja "Perfil de São Paulo", de um compositor de Barretos, falecido em 30 de junho de 1995, Francisco de Assis Bezerra Menezes, advogado boêmio, formado no Largo São Francisco, integrante das caravanas musicais dos tempos de estudante e, depois, compositor com alguns sucessos expressivos. "Aonde estão seus sobrados / de longos telhados / e seus lampiões", é o início de um dos hinos mais belos já oferecidos a uma cidade, quase à altura da "Valsa de uma Cidade", para o Rio de Janeiro.
Na Faculdade de Direito, Bezerrinha (como era chamado) fazia parte de um grupo eclético, que incluía Paulo Autran, Renato Consorte, Paulo Vanzolini, todos envolvidos com arte, nenhum pensando em ser profissional. Semanalmente se reuniam na casa de Inezita Barroso, cujo marido era da faculdade.
Antes disso, nos anos 40, Bezerrinha decidiu ser expedicionário para conhecer a Itália. Voltou, entrou na faculdade e na boemia. Em novembro de 1953 -me informa o meu amigo Pelão-, venceu o concurso de Hino do Quarto Centenário promovido pela rádio Excelsior, hoje CBN. O primeiro intérprete desse clássico foi Silvio Caldas. O segundo, a Orquestra de Luiz Arruda Paes. Depois, Inezita, Agnaldo Rayol, Jair Rodrigues.
Bezerrinha voltou para Barretos e sua casa se tornou centro de boemia de todos os cantores que se apresentavam na cidade. Vez por outra Inezita ia para lá e varavam a noite, Bezerrinha ao piano e sua mulher Lígia, carioca de erre puxado e boa cantora.
Antes mesmo do prêmio, em 1952, visitando Barretos, antes de uma síncope nervosa com a notícia da morte de Francisco Alves, Isaurinha Garcia conheceu e depois gravou "Estava Escrito" ("Estava escrito / desde o começo / que eu te amaria / a qualquer preço"). Ela aprendeu a música por meio de um alfaiate da cidade, metido a maestro, que depois se transformaria em um dos principais arranjadores brasileiros, o rei dos metais Élcio Álvares.
A primeira música gravada de Bezerrinha foi com Albertinho Fortuna, cantor de voz aveludada que fez sucesso no início dos anos 50. Foi "Triste Quarta-Feira" ("Eu sinto que entre nós / nada mais existe nesta quarta-feira"). Depois, a belíssima vedete Luely Figueiró foi inaugurar uma loja em Barretos, conheceu o repertório de Bezerrinha e gravou "Miragem", regravada depois por Rosana Toledo e pelo Conjunto Farroupilha, segundo me conta o radialista José Vicente Dias Leme, memória viva da cidade.
Emérito boêmio, Bezerrinha compunha desde músicas da noite, sambas canções, até modas de viola divertidíssimas, como "Burro Chucro" ("Amontei num burro chucro / mode uma aposta ganhá"). É dele também "A Festa do Peão", que se transformou no hino oficial de Barretos.
O nome de Bezerrinha não consta de nenhuma enciclopédia de música. Pelão promete um CD com músicas dele. Dias Leme é o grande defensor de sua memória. Ambos concordam que uma de suas músicas inéditas, "Bom dia São Paulo", é o clássico definitivo sobre a cidade.
Ainda dá tempo de algum artista sensível correr até Barretos, atrás da família, recuperar o "Bom Dia São Paulo" e, no dia 25, oferecer a primeira audição para a cidade: "Boa noite meu viaduto do Chá / vou chegar até o Paysandu / o Ponto Chic me espera por lá / o chopp gelado e o bauru / São pequenas coisinhas / que prendem São Paulo no coração".
"Boa noite Bexiga / cigarra boêmia / de um mundo bonito demais / e antes que pinte o amanhã / um chateaubriand no velho Morais".

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Luisnassif@uol.com.br


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