São Paulo, domingo, 18 de janeiro de 1998.



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ENTREVISTA
Diplomata teme efeitos da crise asiática sobre preços e critica juros e processo de privatizações brasileiros
Ricupero aponta riscos de deflação global

GILSON SCHWARTZ
da Equipe de Articulistas

Rubens Ricupero, o diplomata que foi responsável pelo batismo do Plano Real e hoje ocupa um posto privilegiado de observação da economia global, hoje alerta para os riscos de uma nova fragilização do sistema bancário brasileiro, critica as privatizações e a falta de regulação adequada, cobra políticas consistentes de competitividade e adverte para os riscos de uma deflação global.
Como secretário-geral da Unctad (órgão das Nações Unidas para o comércio e o desenvolvimento), Ricupero avisa ainda que o Brasil não é pior nem melhor que México ou Coréia do Sul, países que sofreram ataques especulativos em momentos próximos a eleições presidenciais.
Nesta entrevista exclusiva à Folha, Ricupero cita Keynes e Galbraith, condena o excesso de liberalismo no comércio e nas finanças e recomenda cautela contra a "teologia" na economia, que considera os mercados não apenas perfeitos mas também sagrados.

Folha - Como o sr. vê a atual política econômica brasileira?
Ricupero -
Tenho visto insistirem em que metade do déficit em contas externas brasileiras tem sido financiado por investimentos estrangeiros diretos. Isso em princípio é positivo. Mas é preciso fazer qualificações.
No curto prazo esse investimento pressiona ainda mais a balança comercial, principalmente importações de bens de capital e outros insumos. No médio prazo, a pressão vai ocorrer por meio de remessas de lucros e dividendos e repatriação de capital.
No caso da Tailândia e da Malásia os dados mostram que a principal causa do desequilíbrio das contas correntes tem sido, de um lado, a remessa de lucros e dividendos e, de outro, o fato de que se montou uma indústria exportadora altamente dependente da importação de insumos. No caso brasileiro, há pouca evidência de que está sendo gerada uma capacidade adicional de exportação.
Folha - O governo argumenta que esses investimentos criarão condições para exportar, pois vão reduzir custos no Brasil, ainda que indiretamente.
Ricupero -
Pode melhorar ou não, dependendo da qualidade das agências reguladoras. O José Serra mostrou na Folha outro dia que a Light, com deficiências muito graves em prestação de serviços e até interrupção de fornecimento, distribuiu um lucro aos acionistas no ano passado de R$ 251 milhões, uma quantidade extraordinariamente alta para uma empresa com deficiências em seu desempenho. Vê-se que, nesse caso em particular, a privatização não produz os efeitos desejados, pois, em vez de aumentar os investimentos, ela dá lugar a uma distribuição prematura de dividendos, em detrimento do usuário.
Eu creio que ainda há uma grande interrogação sobre se a privatização da Vale do Rio Doce não vai conduzir a um grande desastre, um desmantelamento de uma companhia que tinha boas condições internacionais.
Folha - Qual a sua avaliação dos investimentos diretos?
Ricupero -
No primeiro semestre de 96, as remessas de lucros e dividendos do Brasil foram de US$ 600 milhões, mas foram multiplicadas por 5 no mesmo período de 97. É óbvio que, já sentindo a aproximação de problemas com a moeda, houve uma antecipação de remessas. Mas é inevitável que tudo o que vem como capital vá gerar em algum momento remessas. Só se enfrenta esse problema aumentando substancialmente nossa capacidade de exportação. Existem 12 projetos concretos, grandes, destinados ao mercado externo?
Folha - E a indústria automobilística, que foi beneficiada com uma política que exige a contrapartida de exportações?
Ricupero -
Eu excluo a indústria automobilística, porque acredito que ela não é um bom exemplo, está mundialmente com um excesso de oferta que vai se agravar com a concorrência coreana, por exemplo. Mas também porque boa parte dos investimentos automobilísticos no Brasil são direcionados ao Mercosul ou ao próprio mercado brasileiro. O que aliás não surpreende, já que o câmbio não estimula a exportar.
Folha - E as fusões e aquisições?
Ricupero -
Acho que seria importante verificar o destino da geração de tecnologia nesse processo. Tenho ouvido rumores de que as compras de grandes empresas de autopeças levaram a uma supressão ou redução muito substancial dos investimentos em tecnologia no Brasil. Isso, se confirmado, seria muito grave, provaria que estamos aumentando nossa dependência. A matriz pode ter estratégias que não consultam o interesse da economia do país.
Folha - Âncora e pânicos são então parte pequena do problema?


"Pode ser que haja um ataque (especulativo). Estamos em ano eleitoral."

Ricupero - Acho o enfoque no ataque especulativo importante. Lembrando o título de um livro de ficção, este é o "perigo imediato". Acredito que o Brasil tem condições de superá-lo. Pode ser que haja um ataque. Estamos em ano eleitoral. No México foi logo depois das eleições, na Coréia foi um pouco antes. São momentos propícios. O Brasil não é pior nem melhor, depende da conjuntura. Mas digamos que haja superação desse problema e continuidade da política econômica. A questão mais relevante torna-se então esta, de médio prazo: como o país vai gerar aumento de exportações com essa política? Como vamos tratar a questão da tecnologia? Isso depende da sua capacidade de negociar, não de impor uma lei ou condições absurdas, mas de em cada caso estar atento. O Brasil vai se livrar dos constrangimentos que o têm obrigado a um crescimento lento demais?
Folha - E a atuação do BNDES?
Ricupero -
Tenho esperança de que o BNDES possa desempenhar no Brasil um papel estratégico, pois o que me preocupa aqui em matéria de comércio exterior é não termos uma estratégia de competitividade. Nem temos qualquer órgão capaz de elaborar essa estratégia. É uma característica preocupante da estrutura institucional brasileira. Os problemas de comércio exterior e da competitividade estão fragmentados num sem-número de órgãos, do BC ao MICT. Isso é tradicional, não vem desse governo.
Folha - E a atuação por meio de conselhos setoriais?
Ricupero -
Tenta-se preencher aquele vazio com câmaras e conselhos, mas isso nunca funcionou satisfatoriamente. Isso porque o Brasil não tem tradição de coordenação. As pessoas confundem coordenação com subordinação. É um problema de cultura burocrática. Competitividade não nasce em árvore. Em todos os países, sobretudo nos EUA, há um esforço muito grande do governo em conjunto com o setor privado.
Folha - Como buscar os mercados externos no atual contexto de queda do crescimento mundial?
Ricupero -
No curto prazo eu não vejo razões para otimismo. Mesmo se a crise da Ásia não existisse, os três grandes pólos econômicos do mundo não teriam um ano brilhante em 98. Os EUA, que nos últimos anos cresceram bem, estão entrando numa fase de esgotamento. Não sou em quem diz, basta ouvir o "Moneyline", na CNN. Toda noite eles dizem isso, que há sinais até de uma possível recessão. O economista do Chase já acredita em crescimento inferior a 1% em 98 nos EUA.
Folha - Isso gera um ciclo de queda de crescimento e deflação?
Ricupero -
Aliás é significativo que o homem mais importante da economia mundial, Alan Greenspan, presidente do banco central dos EUA, tenha feito um discurso em que alude à deflação não como uma probabilidade, mas como um risco. Em 96, quando todos os bancos centrais continuavam a combater a inflação, os alemães sobretudo, o BIS, da Basiléia, que é uma instituição muito conservadora mas extremamente lúcida, já lembrava em seu relatório aquela frase do Keynes, que dizia que o dever dos bancos centrais é impedir tanto a inflação como a deflação. Mas os bancos centrais são como o Estado Maior do exército francês em 1914, que se prepara para lutar a guerra passada. A guerra passada é a inflação, mas no atual momento os sinais de pressão de queda de preços estão crescendo. No caso dos EUA, outro fator importante é que as empresas mais dinâmicas e com maior índice de lucratividade (telecomunicações e informática) estão todas fortemente engajadas na Ásia.
Folha - Wall Street resistirá a esse quadro?
Ricupero -
Esse impacto dos asiáticos será sentido apenas daqui a seis ou sete meses, mas já ocorre uma antecipação que pode afetar a Bolsa. A correção que ocorreu em outubro foi muito pequena e foi depois, em boa medida, reposta. A correção será necessária, as empresas aumentam a lucratividade em 10% ao ano, mas as Bolsas vinham tendo ganhos de 30% ao ano. Se, mesmo quando tudo ia bem, já havia um descompasso, agora ele vai tornar-se ainda maior.
Folha - A China tem sido outro fator de resistência a um agravamento da crise. Até quando?


"O setor bancário chinês pode ser até mais complicado que o de seus vizinhos." Ricupero - A vulnerabilidade da China está sobretudo no comércio exterior, devido ao câmbio. Uma das causas menos imediatas da crise asiática foi a desvalorização brutal do yuan entre 95 e 96, coisa que poucos têm dito até agora. Foi uma desvalorização brutal que afetou os outros asiáticos, mesmo em produtos eletrônicos. Agora o efeito dessa desvalorização chinesa foi anulado. O problema é saber se a China pode aceitar um patamar muito menor de exportações. Os chineses anunciaram a privatização das suas estatais. Essas empresas têm redundância em matéria de mão de obra e cumprem um papel de previdência social.

Para eliminar esse tipo de gasto a China correria o risco de aumentar o desemprego, que já vem aumentando. Como absorver a mão de obra sem aumentar aceleradamente as exportações? Aí está o problema. A China, com Hong Kong, tem muitas reservas, essa é uma vantagem. A segunda vantagem é ter se liberalizado pouco, estava no início da liberalização financeira. Foi isso que a protegeu do contágio. O setor bancário chinês pode ser até mais complicado que o de seus vizinhos. Mas é um sistema fechado. É um bom exemplo de como evitar o excesso de liberalização pode ser importante. Como Keynes já dizia, é sempre necessário jogar areia nas engrenagens do sistema financeiro, porque quando elas funcionam azeitadas demais, o que entra com facilidade sai com mais facilidade ainda. Hoje em dia isso nada tem de revolucionário. O Joseph Stiglitz, do Banco Mundial, assim como o Lawrence Klein, estão propondo "circuit breakers" no sistema internacional. Homens de mercado, como Soros, também são favoráveis à introdução de controles. O movimento diário de operações em câmbio é 70 vezes maior que o das transações comerciais.
Folha - Seria necessário rever toda a tendência de desregulamentação global dos últimos anos?
Ricupero -
É como diz também o Galbraith, no novo prefácio ao seu livro clássico sobre a crise de 29: as pessoas fazem teologia econômica, pois querem acreditar que o mercado é não apenas perfeito como também sagrado, nunca é culpado.
Quando alguma coisa vai mal, como houve em 29, em 87 e agora na Ásia, sempre a culpa é dos países, dos fundamentos que não estão certo ou dos bancos que emprestaram errado.
Mas esses fundamentos nunca estão inteiramente certos em nenhum país do mundo. Se amanhã houver uma queda na Bolsa de Nova York, vai ser fácil dizer que havia exuberância irracional, que há 15 anos os EUA acumulam déficits comerciais e em conta corrente. Mas porque essas coisas não justificam uma ação corretiva anterior?
Folha - Mas é também nesse momento que aumentam as pressões conservadoras por soluções saneadoras por meio do mercado. Os EUA vão assumir o ônus de resgatar o resto do mundo?
Ricupero -
Japão e Europa são excedentários. A Ásia e os EUA vinham desempenhando o papel de fontes de dinamismo no comércio mundial. Com a crise na Ásia, só restam os EUA como locomotiva e fonte de absorção das exportações dos outros países. Isso pode levar o déficit comercial a até US$ 300 bilhões, um pouco mais do que era em 1985. Em termos do tamanho da economia norte-americana isso não é grave. Mas, politicamente, isso atinge as empresas norte-americanos e naturalmente leva a pressões protecionistas nos Estados Unidos.
O governo Clinton já perdeu por exemplo o "fast track", aliás, muito antes de toda essa crise. Num momento de desaceleração da economia e em que os EUA se movem para um equilíbrio ou até excedente fiscal, até que ponto irá essa reação, que está crescendo, alimentada pela demora na obtenção de resultados depois de pacotes na Ásia que já superam os US$ 100 bilhões?
O governo norte-americano vai ter de obter do Congresso a votação de créditos adicionais para o FMI. Será um momento decisivo. A teoria de que é preciso quebrar a Ásia é extremamente perigosa, pois teria consequências muito grandes para a própria economia dos EUA.
Folha - E as reservas dos asiáticos em títulos públicos dos EUA?
Ricupero -
Esse é outro ponto. Só os japoneses têm US$ 320 bilhões, de 7% a 10% do total. Eu acredito que o peso do Fed e do Alan Greenspan é muito grande. Em outubro de 87, na segunda-feira negra, o mundo esteve perto de uma catástrofe. A Bolsa de Nova York caiu num só dia 23%. Naquele momento o Greenspan fez um comunicado histórico, dizendo que o Fed como banco central da nação garantia a liquidez do sistema financeiro. Foi o que salvou a Bolsa.
Folha - O que diferencia o momento atual?
Ricupero -
Desta vez o perigo é uma deflação, não no sentido clássico de queda do índice geral de preços e salários, como nos anos 30, e mais no sentido de uma queda persistente no valor dos ativos, inclusive dos imóveis. Isso já está acontecendo. Falta saber a dimensão da correção e se ela vai ocorrer com pânico.
Acredito que o Greenspan e o Fed, com uma experiência de 11 anos, diferentemente dos europeus, buscam equilibrar três objetivos: inflação baixa e maximização do crescimento e do emprego. O sistema americano é muito flexível e acredito que eles vão estar atentos.
Folha - E o Brasil neste quadro?
Ricupero -
Falamos do comércio no médio prazo mas, como o Serra e o Delfim, eu sou daqueles que acreditam que o equilíbrio fiscal virá apenas com crescimento econômico mais acelerado. É o que se vê nos EUA. É evidente que as reformas não vão ser suficientes para resolver esse problema. Só crescendo mais depressa. Mas com as taxas de juros que temos, que já eram as mais altas do mundo e foram dobradas, e com essa taxa de câmbio não vamos crescer. As instituições financeiras já estão alertando em seus relatórios. Para não agravar o desemprego bastava crescer 1%. Hoje seria preciso crescer de 4,5% a 5% apenas para não agravar o desemprego.
Antes do câmbio valorizado o Brasil podia crescer 5% sem agravar a balança comercial. Hoje, um crescimento de 2% já deteriora a balança.
Como crescer para combater o desemprego se isso agrava as contas externas e pode motivar um ataque especulativo?
Eleito o presidente, com a equipe aí, o que vai acontecer, vamos continuar com essa situação?
Folha- Mas não é inevitável, diante da crise externa, manter os juros elevados por tempo indeterminado?
Ricupero-
Quando os juros foram elevados aqui, eles foram para níveis além do que a comunidade internacional esperava. Estamos com taxas muito superiores às de outros países, o Delfim mostrou isso na sua coluna desta semana na Folha. Dizia-se que era para esperar a poeira baixar e iniciar a redução dos juros a partir de março ou abril. Se os juros não declinarem agrava-se não apenas o desemprego, mas se quebra o setor privado. Com esses juros de quase 40% ao ano vamos acabar tendo repercussões sobre o sistema bancário. Isso de que nos orgulhamos hoje, de que o sistema bancário aqui é relativamente melhor, e acho que é verdade, vai ser perdido se os juros continuarem nesses níveis.




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