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São Paulo, domingo, 18 de maio de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Como perder o medo

RUBENS RICUPERO

O brasil tem medo da Alca. E, mesmo em Genebra, na OMC (Organização Mundial do Comércio), receamos sair perdendo em tarifas industriais, serviços, regras sobre propriedade industrial ou investimentos.
Nem sempre é irracional sentir medo. Ao contrário, o medo é emoção altamente racional, sempre que nos ronda um perigo real. Ter medo, nesse caso, é um saudável instinto de auto-preservação. É essa a situação que nos aflige em comércio, porque sabemos que é fraca a nossa competitividade. Ou melhor, ela chega a ser excelente, a primeira do mundo até, em produtos como o açúcar, o etanol, o suco de laranja, o fumo. Em outros -carnes, aço, minério de ferro, café- figuramos também no quadro de honra. O problema é que alguns desses itens estão entre os mais protegidos do universo. Os "lobbies" que os defendem são politicamente poderosos nos Estados Unidos e na Europa e só cederão milímetro a milímetro e, mesmo assim, o resultado é duvidoso. Outros desses bens são demasiado abundantes. Sua oferta não cessa de crescer e, por tratar-se de matérias-primas a granel, o preço é baixo, trazendo pouco valor agregado embutido.
Parte da solução a esses problemas passa pelas negociações. Isso é sobretudo verdade quando os obstáculos principais provêm das barreiras injustificadas de acesso a mercado. É preciso nesse domínio não exagerar o potencial a curto prazo das negociações. Há hoje no Brasil quase uma obsessão com a Alca ou o Mercosul, como se os problemas do comércio exterior pudessem ser resolvidos apenas por meio de acordos regionais ou de país a país. Evidentemente, os acordos ajudam, mas, quando se bate de frente contra o muro do protecionismo, as chances de obter avanços significativos são mínimas. Por exemplo, nem todo o talento negociador do mundo é capaz de comover a forte bancada da Flórida -25 deputados aguerridos- a fazer concessões ao suco de laranja brasileiro.
A solução deve inspirar-se no comportamento dos chineses e asiáticos, gente pragmática, que não dá murro em ponta de faca. Os chineses conseguem saldos gigantescos com os Estados Unidos porque se especializam nos produtos não-protegidos por barreiras intransponíveis. Sempre que a dificuldade se localiza na característica da oferta -como no caso do suco de laranja e do aço- a saída tem de combinar a agressividade negociadora com a melhoria da competitividade, a ampliação e a diversificação da oferta. É para ajudar o Brasil, a América Latina e os subdesenvolvidos em geral a enfrentar esse desafio que a ONU realizará em São Paulo, em junho de 2004, a 11ª Conferência da Unctad.
Essa organização -a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento- congrega mais de 190 países e sempre foi a consciência ética do esforço desenvolvimentista. A reunião de São Paulo deverá ser a maior e mais importante conferência das Nações Unidas realizada em terras brasileiras desde a Cúpula da Terra ou ECO-92, que teve lugar no Rio. Seu objetivo central é aprofundar os vínculos que unem os processos e negociações globais medidas para prevenir ou solucionar crises financeiras, rodada negociadora da OMC com a diversificação e o aperfeiçoamento do sistema produtivo.
De modo específico, deseja-se apresentar os melhores modelos internacionais de políticas públicas para aumentar a competitividade exportadora. Quase todas essas fórmulas combinam: a) sistemas nacionais de inovação; b) geração ou adaptação de tecnologias; c) incorporação aos produtos de valor agregado cada vez maior por parte de mão-de-obra treinada e qualificada. Com a conferência, será realizado o encontro da Associação Mundial de Agências de Promoção de Investimentos (Waipa) e se organizará, em colaboração com o Invest Brasil, creio que pela primeira vez entre nós, uma feira para investidores interessados nos setores brasileiros com potencial exportador.
Como a inovação nasce com frequência nas pequenas e médias empresas, a Unctad está trabalhando com o Sebrae a fim de integrar nesse esforço os milhares de empresários jovens formados pelo programa de treinamento Empretec. Alguns meses antes, a Unctad promoverá no Brasil reunião demonstrativa para toda a América Latina sobre comércio eletrônico e facilitação do comércio.
Além dessa agenda rica e diversificada, haverá ainda quatro componentes essenciais da conferência: 1) o simpósio sobre o papel da mulher no comércio mundial, que mostrará a decisiva participação feminina em atividades empresariais em muitos países da África e da Ásia, bem como as oportunidades que se abrem no setor de serviços, o maior gerador de empregos; 2) a apresentação de experiências inovadoras para colocar o comércio a serviço da redução da pobreza de populações marginalizadas; 3) o Painel de Alto Nível sobre as indústrias criativas e o desenvolvimento, que explorará a ligação entre a criatividade cultural e a promoção econômica; 4) a feira mundial de tecnologias inovadoras nos países em desenvolvimento e sobre as tendências mais promissoras em termos de introdução de produtos novos e dinâmicos no comércio internacional, indo de setores tradicionais como têxteis e confecções ao agribusiness e artigos de alta tecnologia.
O programa é ambicioso, mas contamos com a colaboração das melhores organizações brasileiras e internacionais para torná-lo realidade. Num mundo em que se destrói tanto, é uma proposta construtiva. Num tempo em que o medo paralisa a ação, é o caminho da conquista da competitividade, único meio de vencer o medo de negociar e retomar a "construção interrompida" do Brasil, sonhada por Celso Furtado.


Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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