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São Paulo, domingo, 18 de maio de 2003

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

O que dizem e o que fazem os BCs

LUCIANO COUTINHO

Em trabalho recente, o Bank for International Settlements (BIS nš 130, de Coorine Ho e Robert Mc Cauley) examinou a experiência dos regimes de metas de inflação com flutuação cambial em um conjunto de seis economias desenvolvidas e de 12 economias em desenvolvimento (inclusive o Brasil) nos últimos anos.
Essa revisão de experiências revela que, mesmo nos casos em que a retórica oficial é a de não-intervenção no mercado cambial, na prática as autoridades utilizam instrumentos ad hoc para atenuar os efeitos de flutuações exageradas ou inoportunas da taxa de câmbio. Esse pragmatismo das autoridades, especialmente no caso das economias em desenvolvimento, advém dos impactos significativos da flutuação da taxa de câmbio sobre a inflação e sobre outras condições da economia que tornam imprescindível algum tipo de intervenção. Que impactos são esses?
Primeiro, sobre a inflação. A transmissão da depreciação da taxa de câmbio para os preços (o chamado coeficiente de "pass-through") é maior nas economias em desenvolvimento devido às seguintes razões:
a) maior dependência da cesta básica de consumo de itens importados (petróleo, alimentos) e menor peso relativo dos serviços ("non-tradeables") nos índices de preço ao consumidor (comparativamente aos países desenvolvidos);
b) experiência histórica de alta inflação e, por isso, maior propensão à realimentação e à reindexação;
c) maior grau de dolarização contratual, visto que os preços dos serviços de infra-estrutura foram indexados direta ou indiretamente à taxa de câmbio para tornar atraentes as privatizações.
Sob essas condições, as autoridades se vêem forçadas a lançar mão de instrumentos ad hoc para mitigar choques de depreciação da taxa de câmbio. São vários esses instrumentos, a saber: intervenções no mercado de câmbio via compra e venda de moeda estrangeira (compensadas por operações de enxugamento e expansão de liquidez no mercado de títulos), intervenções verbais ou declaratórias, operações a futuro (opções, "swaps") com moeda estrangeira, oferta e redução de hedge via operação com títulos indexados à taxa de câmbio, manejo do depósito compulsório bancário, diversas formas de controle dos fluxos de capital. No Brasil, o estudo registra que, em 2001 e em 2002, o Banco Central atuou incisivamente por meio da oferta de títulos públicos indexados à taxa de câmbio.
O segundo impacto relevante das flutuações da taxa de câmbio incide sobre o setor externo. Flutuações pronunciadas do câmbio podem travar periodicamente o comércio exterior e tendem a problematizar as decisões de investimento por falta de um referencial minimamente estável para o cálculo econômico. A apreciação excessiva da taxa de câmbio, como é sabido, comprime as margens de lucro dos setores exportadores e desestimula os investimentos em atividades de exportação, assim como favorece as importações e inibe investimentos em substituição de importações. Por essas razões, as autoridades de vários países têm-se preocupado em evitar apreciação e flutuação excessivas da taxa de câmbio por meio dos citados mecanismos de intervenção.
Assinale-se, em terceiro lugar, os impactos das variações cambiais sobre a estabilidade financeira dos setores bancário e não-bancário. Ciclos de apreciação cambial com expressivo ingresso de capitais tendem a provocar bolhas de valorização de ativos e a induzir acelerações do endividamento e do investimento privado. Nesse contexto, qualquer interrupção ou reversão do ingresso de capitais acarretará graves desequilíbrios patrimoniais ao setor privado. Quando a taxa de câmbio se deprecia agudamente, isso causa deflação do valor dos ativos e desequilibra a capacidade de servir as dívidas contraídas em moeda estrangeira (não cobertas por posições de hedge). Se, como no caso argentino, o sistema bancário estiver em uma situação de descasamento cambial (fluxo das obrigações em moeda estrangeira incompatível com o respectivo "cash flow"), desemboca-se numa grave crise de liquidez, que terá que ser enfrentada por meio de mecanismos onerosos de socialização de perdas (via inflacionária ou não). Assim, a percepção de que é sensato prevenir graves riscos patrimoniais e desequilíbrios financeiros tem justificado a adoção de medidas para evitar crises cambiais, por meio do uso dos mencionados instrumentos excepcionais.
Em síntese, a experiência dos países pesquisados pelo BIS demonstra como as flutuações excessivas da taxa de câmbio criam desafios magnos para as políticas macroeconômicas e como isso obriga as autoridades a reagir -ainda que, em certos casos, mantenham uma retórica de não-intervenção. A posição do Banco Central do Brasil foi classificada pelo BIS como "flexível" em termos de calibragem das metas de inflação bem como em relação ao uso de instrumentos de intervenção. Assim sendo, a queda -agora em curso- dos índices de inflação, a superação dos riscos de reindexação e a diminuição das expectativas inflacionárias -num contexto de forte retração da demanda doméstica- abrem espaço para a redução da taxa de juros e para o uso inteligente dos instrumentos ad hoc.


Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).


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