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São Paulo, domingo, 18 de maio de 2003

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LUÍS NASSIF

Os que vêm do interior

Só os que vieram do interior sabem o que significa a cidade natal para nós. As cidades são compostas por momentos, períodos, gerações. Em cidades menores, a pasmaceira prolonga um pouco mais os períodos, mas não se avança além do limite de cada geração. Cidades mais dinâmicas tornam-se logo retrato na parede, assistindo passivas, ano após ano, à partida da parcela mais relevante de seus jovens atrás do fascínio das metrópoles.
Por isso mesmo, o sonho do eterno retorno, sempre adiado, no fundo visa apenas apaziguar a alma e disfarçar a verdade fria de que a cidade atual não mais é a cidade que se deixou. No máximo essa fantasia serve como indutora de lembranças, despertadas por suas ruas e esquinas ou pelos sobreviventes que, em geral, preservam apenas a história oral da cidade.
A minha Poços de Caldas, por exemplo, existe apenas nas minhas lembranças, dos meus contemporâneos e dos que nos precederam.
Quando meu pai morreu, em fins dos anos 80, entrei na empreitada por vezes obsessiva de resgatar Poços, a do meu tempo e a do seu, as várias Poços que emergem dos anos 20 e desembocam nos anos 70.
É um mergulho dolorido esse resgate das conversas que não se teve quando se devia, das histórias que não se colheram a tempo, esse reencontro que, em geral, aproxima pais e filhos apenas depois da passagem.
Conversei com Zé do Caé, o agente funerário, e com Walther Moreira Salles, o banqueiro; com Sebastião Trindade, o eletricista comunista, e com Miguel Carvalho Dias, o sócio de Antônio Ermírio; com Moleque César, o sambista, jornalista policial, poeta e malandro à mineira, e com Antonio Candido, o professor; com seu Geraldo da banca de revistas e com o Homero Souza e Silva, que o Rio antigo inteiro admirava. Conheci algumas mocinhas dos anos 30 e revi alguns dos "almofadinhas" que faziam a alegria das banhistas.
Nessas andanças, conduzido pela experiência riquíssima de Moreira Salles, fui desenrolando os fios que ligavam Poços ao Rio imbatível daqueles tempos e, nessa teia, aprendendo a conhecer o Brasil.
Fui assimilando histórias, fatos, momentos, mas em minha cabeça ia se avolumando um paradoxo. Quanto mais conhecia a Poços que já foi, menos reconhecia a Poços que hoje é e mais dúvidas tinha sobre a Poços que será. Como sair dessa encrenca, como apaziguar as lembranças e reencontrar a cidade em sua plenitude, integrando-me não apenas às lembranças mas ao seu presente e ajudando na preparação do futuro?
Nostálgico, sim; saudosista, jamais!
Aí encontrei o Toninho Trevisan cantando um bolero com voz de Nelson Gonçalves. Toninho saiu de um tico de cidade, Ribeirão Bonito, e encontrou o caminho da reconciliação: uma organização social com outros conterrâneos, para atuar na cidade, ajudando até a desarmar os esquemas de corrupção que a dominaram por anos.
Não há notícias conhecidas de corrupção na história de Poços. Mas há um potencial adormecido, muita coisa por fazer, resultado da falta de idéias e iniciativas que, em geral, são a contrapartida negativa ao ritmo mais agradável do interior.
E toca a conversar com o Hubert Alquéres, que herdou da mãe poço-caldense a paixão pela cidade, a ligar para o Mário Mourão, filho do dr. Benedictus, a procurar colegas, que encontrassem outros colegas, que apontassem outros colegas para a montagem de uma rede de relações capaz de juntar, a todos nós, em torno de lembranças e de propostas.
Na próxima terça, seguiremos o exemplo do Toninho e juntaremos os conterrâneos de várias épocas no Bardaló, um boteco da alameda Jaú com as paredes forradas por fotos de Poços.
Não sei se sairão somente lembranças, projetos ou ações futuras. Mas olhando o Rio de janela do hotel, enquanto aguardo o momento de ir à Bienal do Livro, me deu um reconfortante sentimento de que o enigma de integrar o passado ao presente da cidade está prestes a ser solucionado na minha cabeça.
Quem quiser aderir é só me escrever, porque o passado é bom, mas nada substitui uma boa internet para localizar pessoas. E um bom boteco, para juntá-las e às suas lembranças.
E-mail - Luisnassif@uol.com.br



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