São Paulo, domingo, 18 de junho de 2006 |
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JOSÉ ALEXANDRE SCHEINKMAN Corrupção e estacionamento proibido
ATÉ NOVEMBRO de 2002, os diplomatas estrangeiros e suas
famílias gozavam de um incrível privilégio na cidade de Nova
York. Embora pudessem ser multados por estacionamento proibido, a
imunidade diplomática lhes permitia não pagar as infrações. O resultado é que, em um período de cinco
anos, diplomatas deixaram de pagar
mais de 150 mil multas.
Um trabalho ainda não publicado
de Ray Fisman, da Universidade
Columbia, e Edward Miguel, da
Universidade da Califórnia-Berkeley*, utiliza dados da Prefeitura de
Nova York e das Nações Unidas para documentar uma grande disparidade de comportamento entre os
diplomatas dos diversos países. No
período que vai de novembro de
1997 a novembro de 2002, não há
uma só infração não-paga de representantes da Dinamarca, da Noruega, da Suécia ou do Canadá. Enquanto isso, a missão do Kuait na
ONU acumulou anualmente quase
250 multas não-pagas para cada um
de seus diplomatas.
Os autores documentam que o
número de multas não-pagas é bem
correlacionado com medidas, tais
como as produzidas pela organização Transparência Internacional,
do nível de corrupção do país de origem. Essa associação está presente,
mesmo levando em consideração
diferenças de renda per capita ou
quando os autores consideram apenas as irregularidades mais graves,
como estacionar em fila dupla nas
ruas mais estreitas ou em frente a
um hidrante. A correlação não é
muito diferente quando os autores
incluem também as multas pagas.
Cientistas sociais há muito argumentam a função de "normas sociais" na manutenção de uma cultura de corrupção. Uma das dificuldades de documentar sistematicamente essa associação é que, nas sociedades em que a corrupção é menos aceita, a legislação é também
mais rigorosa com essa modalidade
de crime. Por isso fica difícil separar
o efeito das normas sociais das conseqüências dissuasivas da lei.
Todos os diplomatas presentes
em Nova York enfrentavam a mesma punição -isto é, nenhuma, e todos sabiam que, ao parar em fila dupla numa rua estreita de Manhattan, estavam engarrafando o trânsito e impondo um alto custo a outros. Fisman e Miguel propõem
que, como os carros diplomáticos
não são identificados de acordo
com o país, a diferença no número
de infrações reflete principalmente
a atitude dos representantes em relação ao abuso de privilégios. E é razoável supor que a atitude dos diplomatas espelha a tolerância em
seus países de origem em relação ao
aproveitamento de regalias. A correlação com outras medidas de corrupção dá suporte ao argumento de
que as normas sociais têm um papel
na sustentação de práticas corruptas.
Estudos como esse estabelecem
relações estatísticas e é possível que
os índices de multas dos diplomatas
de um país reflita também condições especiais, tal como a localização da embaixada na ONU. Mas
confesso que não me surpreendeu
verificar que os diplomatas brasileiros acreditados nas Nações Unidas
acumularam quase 30 multas per
capita não-pagas por ano. A delegação do Brasil foi a 29ª entre as que
mais se aproveitaram da imunidade
num total de 143 e teve o pior comportamento entre as missões da
América Latina. Afinal, somos realmente o país do "sabe com quem está falando?".
A conexão entre o aproveitamento de regalias e corrupção no Brasil
foi mais uma vez ilustrada no escândalo do mensalão. A reação inicial
da imprensa e da população indicava uma menor tolerância com o abuso de privilégios. Mas um sinal de
que essa mudança de "norma social"
não está sendo levada a sério foi a inclusão de inúmeros políticos mensaleiros nas listas de candidatos a
deputado federal para as próximas
eleições.
Em outubro de 2002, por sugestão do prefeito Michael Bloomberg,
o Senado norte-americano aprovou
uma lei que permitiu à cidade de Nova York, entre outras medidas, rebocar os automóveis com placa diplomática estacionados irregularmente. O número de infrações recuou
substancialmente, demonstrando,
mais uma vez, o papel dissuasório
das punições. Enquanto nós esperamos que a atitude em relação ao
abuso de privilégios mude no Brasil,
precisamos endurecer a lei e fazê-la
cumprir.
Fisman, R. e E. Miguel, "Cultures of Corruption: Evidence from Diplomatic Parking Tickets", maio/06.
JOSÉ ALEXANDRE SCHEINKMAN , 58, professor de economia na Universidade Princeton (EUA), escreve quinzenalmente aos domingos nesta coluna.
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