São Paulo, segunda-feira, 18 de novembro de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

Motivos para não refinanciar

RENATO VILLELA

Governadores eleitos declararam que vão pleitear ao futuro presidente a renegociação das dívidas dos Estados com a União. Desejam reduzir o seu serviço ao diminuir o limite máximo, contratualmente definido, de comprometimento de sua receita líquida com os pagamentos mensais ao Tesouro Nacional. Vale notar que a cláusula atual já constitui benefício significativo, pois os Estados e municípios mais endividados teriam, nas condições financeiras normais, um gasto com juros e amortização bem mais elevado.
Como é de amplo conhecimento, após a implementação dos últimos refinanciamentos, associados a programas de ajuste nos Estados e a regras genéricas de natureza fiscal, no caso dos municípios, foi notável a contribuição desses governos ao esforço de ajuste do setor público brasileiro. Em 1998, o déficit primário de Estados e municípios correspondia a 0,3% do PIB. Já em 1999, observou-se superávit de 0,2%, que aumentou para 0,7% em 2000, 1,2% em 2001 e 1,3% até agosto de 2002, sendo este um ano eleitoral.
Na verdade, o ajuste incluiu também incentivos à eliminação de importantes fatores de desequilíbrio fiscal, como os bancos estaduais, em sua grande maioria já privatizados, liquidados ou federalizados e em vias de privatização. Entretanto parte substancial do resultado alcançado se deveu à obrigatoriedade de Estados e municípios gerarem os superávits primários requeridos para honrarem tal pagamento. Na hipótese de redução de tal obrigatoriedade, transfere-se para a União a responsabilidade do esforço adicional para o cumprimento das metas fiscais consolidadas, compromisso já reiterado pelo presidente eleito. Mas não é esse o único motivo pelo qual propostas dessa natureza não podem ser contempladas por quem verdadeiramente se preocupa com responsabilidade fiscal.
O governo federal, ao assumir a dívida de Estados e municípios, sofreu impacto significativo na sua dívida. Esse benefício foi responsável por um terço do crescimento da dívida mobiliária da União desde 1994. Foi, ainda, concedido aos Estados e municípios um subsídio referente ao diferencial entre a taxa Selic -custo da dívida federal emitida para fins do refinanciamento- e o IGP-DI + 6% ou 9% ao ano -o que é cobrado dos Estados e municípios. Tais subsídios, ao final de setembro, acumulavam o montante de R$ 60,5 bilhões.
Em vista desse custo e do aumento de sua dívida decorrente dos refinanciamentos, a União não deve abrir mão dos pouco mais de R$ 10 bilhões que recebe de Estados e municípios, que, integralmente direcionados para o resgate da dívida federal, os compensam parcialmente.
Ao final de 1999, o senador José Alencar (PL-MG) apresentou proposta que visava a reduzir de 13% para 5% da receita líquida de Estados e municípios o limite de comprometimento com o serviço de sua dívida com a União. Simulações indicam que, se tal proposta tivesse sido aprovada e vigesse a partir de janeiro de 2000, a dívida da União seria R$ 24,2 bilhões maior do que é hoje. Caso vigore em 2003, tal acréscimo, ao final do ano, será de R$ 8,2 bilhões.
Há, ainda, outros motivos pelos quais propostas de refinanciamento devem ser descartadas. Primeiramente, renegociação isoladamente não adianta. Sem que ela esteja associada a compromissos firmes quanto ao ajustamento dos fluxos fiscais e redução dos níveis de endividamento, a repactuação da dívida apenas alivia o caixa de Estados e municípios e reabre espaço para novo endividamento. De 1985 para cá, foi necessário, a cada período de dois a três anos, um novo programa de reescalonamento de dívidas: em 1987 (lei nš 7.614); em 1989 (lei nš 7.976); em 1993 (lei nš 8.727); em 1995 (voto CMN 162, ocasião em que, pela primeira vez, alguns compromissos de ajustamento fiscal foram exigidos); em 1997 (lei nš 9.496, refinanciamento de Estados); e, por fim, em 1999 (MP nš 2.185, refinanciamento de municípios).
Conforme já mencionado, só a partir dos últimos refinanciamentos lograram-se resultados fiscais animadores nos governos subnacionais. Interromper esse processo significa retornar à situação anterior, com novos e recorrentes refinanciamentos.
Em segundo lugar, não é por acaso que a demanda por renegociação vem de Estados que estão constantemente na mídia como enfrentando problemas de natureza fiscal. Diferentemente da maioria, tais Estados não parecem ter sido capazes de transformar os benefícios decorrentes do refinanciamento em ganhos permanentes. Hoje, pedem benefícios adicionais, que, se concedidos, sinalizarão aos demais que o esforço de ajuste foi em vão.
Em terceiro lugar, como tal mudança fere a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal), em seu art. 35, que proíbe novas operações de crédito, inclusive refinanciamentos entre entes da Federação, contemplar o atendimento desse pleito significa admitir alterar essa lei complementar. A sociedade brasileira apoiou explícita e decisivamente a LRF. O complexo processo legislativo que essa alteração ensejaria, envolvendo a obtenção de quórum qualificado em dois turnos de votação em ambas as casas, submeterá o Congresso, que ora se renova, a um significativo e desnecessário estresse com sua base de representação.
Fica claro, portanto, que contemplar seriamente a renegociação das dívidas de Estados e municípios significa colocar em risco todo o processo de ajuste fiscal que a maior parte desses entes logrou realizar nos últimos sete anos e, com isso, pôr a perder todo o esforço representado pelo elevado custo incorrido pela União e por aqueles que efetivamente se ajustaram. Olhando para a frente, significa, também, romper o principal pilar de sustentação da Lei de Responsabilidade Fiscal, tão valorizada pela sociedade brasileira.


Renato Villela, 46, economista com mestrado na University of Illinois at Urbana-Champaign, é secretário-adjunto do Tesouro Nacional.




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