São Paulo, segunda-feira, 19 de abril de 2010

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ARTIGO

A armadilha mortal da dívida

Contração fiscal pode, ao menos em curto prazo, agravar mais a recessão

NOURIEL ROUBINI
ESPECIAL PARA O PROJECT SYNDICATE

A saga financeira grega é a ponta de um iceberg de problemas de sustentabilidade de dívidas públicas em muitas das economias avançadas, e não só entre os chamados Piigs (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha). De fato, a OCDE agora estima que a relação entre dívida pública e PIB nas economias ricas chegue a uma média de 100% do PIB.
Nos Piigs, os problemas não são apenas os deficit públicos excessivos e a razão elevada entre dívida e PIB. Há também problemas de deficit externos, perda de competitividade e, assim, de crescimento anêmico.
Essas são economias que, mesmo uma década atrás, estavam perdendo mercado para China e Ásia, devido às suas exportações de baixo valor adicionado e que requerem uso intensivo de mão de obra. Depois de uma década na qual os salários cresceram mais rápido que a produtividade, os custos por unidade de mão de obra subiram acentuadamente. A perda de competitividade resultante se manifestou em deficit grandes e crescentes em conta corrente e em desaceleração no crescimento. O toque final para o processo foi a valorização do euro entre 2002 e 2008.
Assim, mesmo que a Grécia e os demais Piigs tivessem a firmeza política requerida para reduzir fortemente os seus grandes deficit fiscais -e isso é bastante improvável-, a contração fiscal pode, ao menos em curto prazo, agravar ainda mais a atual recessão, porque impostos mais altos e gastos públicos menores resultariam em redução da demanda agregada. Se o PIB cair, atingir determinadas metas de deficit e dívida se tornará impossível. Foi essa, de fato, a armadilha mortal de dívida em que a Argentina se viu apanhada entre 1998 e 2001.
Restaurar o crescimento sustentado requer desvalorização real da moeda. Existem só três maneiras de realizá-la. A primeira é uma deflação que reduza preços e salários em 20% a 30%. Mas a deflação está associada a uma recessão persistente (vide uma vez mais o caso da Argentina), e sociedade e sistema político de país algum podem aceitar anos de recessão e austeridade fiscal a fim de obter depreciação real. Uma moratória e o abandono do euro poderiam surgir antes disso.
O segundo caminho é seguir o modelo alemão de aceleração das reformas estruturais e reestruturação empresarial, a fim de elevar o avanço da produtividade e manter avanço moderado dos salários. Mas demorou uma década para que a Alemanha reduzisse o custo de sua unidade de mão de obra, dessa maneira; se Espanha ou Grécia começassem o processo hoje, os custos da realocação de recursos em curto prazo seriam altos, enquanto os benefícios em termos de um crescimento mais alto demorariam anos.
Por fim, o euro poderia cair acentuadamente de valor. Mas o principal beneficiário disso seria a Alemanha. E, para que o euro caia o bastante, o risco de moratória da Grécia teria de ser muito grande, e o contágio em termos dos ágios nos títulos dos Piigs, severo o bastante para que o processo resultasse em uma recessão de duplo mergulho na zona do euro, antes que a desvalorização cambial apresentasse resultados concretos.
Caso não haja um milagre, a Grécia parece próxima da insolvência. No início de sua crise, deficit orçamentário, dívida pública e deficit em conta corrente da Argentina (como proporção do PIB) eram de 3%, 50% e 2%, respectivamente. Na Grécia, os indicadores são muito piores: 12,9%, 120% e 10%. Assim, serão necessários um esforço hercúleo, sorte e apoio da União Europeia e do FMI para reduzir a chance de moratória e saída da zona do euro.
A Grécia no momento tem uma economia interconectada demais com as dos demais europeus para que se possa permitir seu colapso. Além disso, o contágio na forma de ágio nos títulos de dívida soberana dos demais Piigs seria forte, o que arremessaria várias dessas economias para a mesma situação.

Necessidade de apoio
Assim, a despeito da repulsa da Alemanha e do Banco Central Europeu quanto à ideia de um "resgate", a Grécia precisa de forte apoio financeiro oficial neste ano, com juros que não sejam insustentáveis, a fim de impedir que sua atual falta de liquidez se transforme imediatamente em insolvência. Mas o apoio oficial só empurrará a situação para o futuro. A combinação mágica de razões sustentáveis de dívida e deficit, desvalorização real e restauração do crescimento dificilmente poderá ser atingida, mesmo que haja apoio financeiro oficial.
Todos os resgates bem-sucedidos a países que enfrentavam dificuldades financeiras, como México, Coreia do Sul e Brasil, dependiam de duas condições: a disposição confiável do país em impor a austeridade fiscal e as reformas estruturais necessárias; e grandes montantes em apoio oficial imediato para evitar uma crise de rolagem de dívida pública e/ou privada com vencimento em curto prazo.
Reforma sem dinheiro na mesa não funciona, porque investidores nervosos e precipitados tirarão seu dinheiro do país caso ele não disponha das reservas cambiais necessárias para impedir o equivalente a uma corrida bancária contra seus passivos de curto prazo.
Assim, depois de um plano completamente ineficaz, que ofereceria dinheiro à Grécia tarde demais -apenas quando o país já estivesse em risco de uma crise de rolagem de dívida- e a taxas de mercado que tornariam sua dívida insustentável, a União Europeia recuperou o juízo e criou um esquema mais parecido com um pacote de apoio condicional do FMI: apoio desembolsado com base em cumprimento de metas, com desembolsos iniciais mais elevados e juros generosos.
Só o tempo dirá se esse plano vai funcionar, ou seja, se a Grécia manterá a solvência apesar da falta de liquidez, o que dependerá de austeridade fiscal e reformas estruturais confiáveis, com a ajuda de grandes montantes em apoio financeiro. Mas, como nos casos de Argentina, Rússia e Equador, a Grécia também pode cair na insolvência caso o ajuste não restaure a sustentabilidade de suas dívidas e de seu crescimento. Por enquanto, a comunidade oficial decidiu que vai tentar o plano A; caso ele fracasse, o plano B seria uma moratória para reduzir as dívidas insustentáveis, e o abandono do euro pela Grécia a fim de permitir uma desvalorização e a restauração da competitividade e do crescimento.


NOURIEL ROUBINI é professor de Economia na Escola Stern de Administração de Empresas, Universidade de Nova York, e presidente da Roubini Global Economics (www.roubini.com), uma consultoria mundial de macroeconomia.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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