|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OPINIÃO ECONÔMICA
A hiperpotência e o "containment" pela diplomacia
SÉRGIO DANESE
Dois fatos marcantes das
relações internacionais em
2004 são a ampliação da União
Européia, ao agregar oito antigos
satélites ou partes da ex-União
Soviética, e a decisão da OMC que
condenou os EUA na questão dos
subsídios domésticos à produção
de algodão. São grandes vitórias
de dois laboriosos trabalhos diplomáticos.
Pelo que representam, um em
matéria de fortalecimento de um
pólo do poder mundial, e o outro,
do direito internacional, na sua
vertente do multilateralismo e da
solução jurídica de controvérsias,
ambos ajudam a contestar a crença reducionista de que vivemos
em uma ordem estritamente unipolar, em que o poder da única hiperpotência seria ilimitado, restando aos demais membros da
comunidade internacional a submissão passiva, o isolamento
amedrontado ou atos de pura temeridade.
Por mais desmesurado que seja,
o poder norte-americano sofre limitações, que abrem espaço para
um país como o Brasil. Depois de
1989, as relações internacionais
continuaram a ser um conjunto
de jogos de poder com geometrias
variáveis, e não o jogo único de
um só ator. É o que explica, por
exemplo, a criação da OMC, com
plena participação dos EUA. É tese que contraria a visão de arautos
e opositores do que seria a hegemonia dos EUA no mundo da
globalização e que chama ao realismo, para enxergar sem a lente
das ideologias ou da paranóia as
verdadeiras relações de poder que
marcam cada tabuleiro do jogo
internacional. É também uma
exortação à ação serena e determinada para defender interesses
diante da hiperpotência, com a
qual, de resto, o mundo inteiro
deseja ter as melhores relações
possíveis.
A ampliação da União Européia
e a tremenda vitória, por enquanto jurídico-política, mais adiante
possivelmente econômica, obtida
na OMC por um país em desenvolvimento contra os interesses
dos EUA se acrescentam a diversos fatores que fazem uma realidade: mesmo uma hiperpotência
como os EUA de hoje, com músculos flexionados pela luta contra
o terrorismo, está longe da onipotência que muitos, dentro e fora
dos EUA, à direita e à esquerda, e
pelas mais diferentes razões, lhe
atribuem.
Dou dois exemplos:1) a necessidade, constante na história dos
EUA e ligada à ideologia sobre a
qual o país se construiu, de legitimar a sua ação externa. Boa parte
da legitimação buscada pelos
EUA implica forjar coalizões externas (o caso da Guerra do Golfo,
em 1990-91, e a da Bósnia, em
1993-94), obter mandatos formais
de órgãos representativos da comunidade internacional (de que é
exemplar a resolução da OEA sobre a quarentena imposta a Cuba
na crise dos mísseis de 1962) e
propor e implementar idéias ou
projetos com tal força moral e ética que eles passam a constituir a
própria fonte da legitimidade (vários dos 14 pontos de Wilson ou a
política de direitos humanos de
Carter).
A forma pela qual os EUA perseguem a legitimação é reflexo de
seus instintos de poder; mas a história registra inúmeros exemplos
de como essa necessidade obrigou-os a flexibilizar suas posições
e a buscar alianças;
2) a própria complexidade da
sociedade norte-americana, na
qual é relativamente fácil encontrar aliados de maior ou menor
peso e influência sobre o processo
decisório em relação a praticamente qualquer causa. Hiperpotência, sim, mas permeável, por
meio do sistema de lobbies e jogos
de interesses setoriais e regionais,
a alianças que têm o forte potencial de matizar o que de outra forma seria a monolítica determinação de impor vontades supostamente nacionais. Foi o que ocorreu na ação brasileira em favor da
quebra de patentes dos medicamentos contra a Aids: a aliança se
faz não com o Estado norte-americano, mas com um grupo de poder organizado que compensa de
dentro o diferencial externo de
poder.
A realidade também é um poderoso fator limitador. As teses da
unipolaridade do mundo pós-Guerra Fria se baseiam principalmente na questão do poderio estratégico-militar. Se o mundo de
hoje é unipolar pelos critérios
analíticos pré-1989, também é
verdade que a ideologia da Guerra
Fria deixava de lado o plano econômico e tecnológico, multipolar
desde que a Europa e o Japão engrenaram na sua reconstrução.
Hoje, com a força econômica e
estratégica da União Européia e
da China, é difícil insistir na mesma tese; afinal, a história do segundo pós-guerra tem sido a da
continuada relativização do poder, esse sim então incontestável,
que os EUA haviam acumulado
com a derrota do Eixo e a destruição da Europa e da União Soviética.
No início da Guerra Fria, os
EUA desenvolveram a doutrina
do "containment" (contenção)
norteados pela noção de que a
URSS não tinha limitações de nenhuma espécie às suas pretensões
hegemônicas. A hiperpotência do
século 21 traz o "containment"
em parte dentro de si, em parte na
complexa e cambiante realidade
da diplomacia mundial e do direito internacional, que mostram as
realidades de uma Europa gigante
ou de uma OMC capaz de condenar os EUA. Dessa realidade e de
boa parte desse direito internacional os EUA não podem prescindir.
A ampliação da União Européia
e a consolidação do sistema de solução de controvérsias da OMC
não são estratégias deliberadas de
"containment" dos EUA, e sim
"business as usual" nas relações
internacionais contemporâneas;
mas acabam tendo esse efeito, ao
mostrar limites às hegemonias e
às vocações de unilateralismo
(que não são apenas norte-americanas). Ao contrário do que se
diz, portanto, o nome do jogo,
mais do que nunca, é diplomacia.
Sérgio Danese, 49, diplomata, é ministro na Embaixada do Brasil em Buenos
Aires. Foi porta-voz do Ministério da Fazenda (governo Itamar Franco). Autor de
"Diplomacia Presidencial" (Topbooks). O
artigo é de caráter pessoal e não engaja
o governo brasileiro.
Hoje, excepcionalmente, a
coluna de Antonio Barros de Castro
não é publicada.
Texto Anterior: Empresários esperam recuo de até 0,5 ponto Próximo Texto: Luís Nassif: A revanche de Woodstock Índice
|