São Paulo, quarta-feira, 19 de maio de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

A hiperpotência e o "containment" pela diplomacia

SÉRGIO DANESE

Dois fatos marcantes das relações internacionais em 2004 são a ampliação da União Européia, ao agregar oito antigos satélites ou partes da ex-União Soviética, e a decisão da OMC que condenou os EUA na questão dos subsídios domésticos à produção de algodão. São grandes vitórias de dois laboriosos trabalhos diplomáticos.
Pelo que representam, um em matéria de fortalecimento de um pólo do poder mundial, e o outro, do direito internacional, na sua vertente do multilateralismo e da solução jurídica de controvérsias, ambos ajudam a contestar a crença reducionista de que vivemos em uma ordem estritamente unipolar, em que o poder da única hiperpotência seria ilimitado, restando aos demais membros da comunidade internacional a submissão passiva, o isolamento amedrontado ou atos de pura temeridade.
Por mais desmesurado que seja, o poder norte-americano sofre limitações, que abrem espaço para um país como o Brasil. Depois de 1989, as relações internacionais continuaram a ser um conjunto de jogos de poder com geometrias variáveis, e não o jogo único de um só ator. É o que explica, por exemplo, a criação da OMC, com plena participação dos EUA. É tese que contraria a visão de arautos e opositores do que seria a hegemonia dos EUA no mundo da globalização e que chama ao realismo, para enxergar sem a lente das ideologias ou da paranóia as verdadeiras relações de poder que marcam cada tabuleiro do jogo internacional. É também uma exortação à ação serena e determinada para defender interesses diante da hiperpotência, com a qual, de resto, o mundo inteiro deseja ter as melhores relações possíveis.
A ampliação da União Européia e a tremenda vitória, por enquanto jurídico-política, mais adiante possivelmente econômica, obtida na OMC por um país em desenvolvimento contra os interesses dos EUA se acrescentam a diversos fatores que fazem uma realidade: mesmo uma hiperpotência como os EUA de hoje, com músculos flexionados pela luta contra o terrorismo, está longe da onipotência que muitos, dentro e fora dos EUA, à direita e à esquerda, e pelas mais diferentes razões, lhe atribuem.
Dou dois exemplos:1) a necessidade, constante na história dos EUA e ligada à ideologia sobre a qual o país se construiu, de legitimar a sua ação externa. Boa parte da legitimação buscada pelos EUA implica forjar coalizões externas (o caso da Guerra do Golfo, em 1990-91, e a da Bósnia, em 1993-94), obter mandatos formais de órgãos representativos da comunidade internacional (de que é exemplar a resolução da OEA sobre a quarentena imposta a Cuba na crise dos mísseis de 1962) e propor e implementar idéias ou projetos com tal força moral e ética que eles passam a constituir a própria fonte da legitimidade (vários dos 14 pontos de Wilson ou a política de direitos humanos de Carter).
A forma pela qual os EUA perseguem a legitimação é reflexo de seus instintos de poder; mas a história registra inúmeros exemplos de como essa necessidade obrigou-os a flexibilizar suas posições e a buscar alianças;
2) a própria complexidade da sociedade norte-americana, na qual é relativamente fácil encontrar aliados de maior ou menor peso e influência sobre o processo decisório em relação a praticamente qualquer causa. Hiperpotência, sim, mas permeável, por meio do sistema de lobbies e jogos de interesses setoriais e regionais, a alianças que têm o forte potencial de matizar o que de outra forma seria a monolítica determinação de impor vontades supostamente nacionais. Foi o que ocorreu na ação brasileira em favor da quebra de patentes dos medicamentos contra a Aids: a aliança se faz não com o Estado norte-americano, mas com um grupo de poder organizado que compensa de dentro o diferencial externo de poder.
A realidade também é um poderoso fator limitador. As teses da unipolaridade do mundo pós-Guerra Fria se baseiam principalmente na questão do poderio estratégico-militar. Se o mundo de hoje é unipolar pelos critérios analíticos pré-1989, também é verdade que a ideologia da Guerra Fria deixava de lado o plano econômico e tecnológico, multipolar desde que a Europa e o Japão engrenaram na sua reconstrução.
Hoje, com a força econômica e estratégica da União Européia e da China, é difícil insistir na mesma tese; afinal, a história do segundo pós-guerra tem sido a da continuada relativização do poder, esse sim então incontestável, que os EUA haviam acumulado com a derrota do Eixo e a destruição da Europa e da União Soviética.
No início da Guerra Fria, os EUA desenvolveram a doutrina do "containment" (contenção) norteados pela noção de que a URSS não tinha limitações de nenhuma espécie às suas pretensões hegemônicas. A hiperpotência do século 21 traz o "containment" em parte dentro de si, em parte na complexa e cambiante realidade da diplomacia mundial e do direito internacional, que mostram as realidades de uma Europa gigante ou de uma OMC capaz de condenar os EUA. Dessa realidade e de boa parte desse direito internacional os EUA não podem prescindir.
A ampliação da União Européia e a consolidação do sistema de solução de controvérsias da OMC não são estratégias deliberadas de "containment" dos EUA, e sim "business as usual" nas relações internacionais contemporâneas; mas acabam tendo esse efeito, ao mostrar limites às hegemonias e às vocações de unilateralismo (que não são apenas norte-americanas). Ao contrário do que se diz, portanto, o nome do jogo, mais do que nunca, é diplomacia.


Sérgio Danese, 49, diplomata, é ministro na Embaixada do Brasil em Buenos Aires. Foi porta-voz do Ministério da Fazenda (governo Itamar Franco). Autor de "Diplomacia Presidencial" (Topbooks). O artigo é de caráter pessoal e não engaja o governo brasileiro.

Hoje, excepcionalmente, a coluna de Antonio Barros de Castro não é publicada.


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