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OPINIÃO ECONÔMICA
A segunda vinda
RUBENS RICUPERO
²
A ameaça do impeachment de
Clinton e o ataque contra o Iraque voltam a nos lembrar que o
poder tem razões que a economia desconhece. No momento
em que o mundo se debate com a
pior crise econômica dos últimos
50 anos, será que precisávamos
desses dois eventos provocados
pela vontade política e, na pior
das hipóteses, evitáveis ou adiáveis? Eram eles necessários precisamente agora? Contribuem de
algum modo para avançar a solução de tantos problemas de pobreza, doença, ignorância, que
tornam a vida humana miserável e precária?
São as perguntas que nos fazemos nesta triste oitava do Natal
povoada de angústia e desalento.
Quase 2.000 anos atrás, nascia
entre nós aquele que Isaías chamou de príncipe da paz. Na véspera do início do terceiro milênio
da natividade, seu reino continua tão distante como sempre
esteve.
Estamos a completar dez anos
da queda do muro de Berlim e
das extravagantes ilusões que
então se propagaram. Onde estão agora os sonhos de uma história congelada como o homem
das neves, prisioneira de uma
perpétua e imutável juventude
feita de democracia e prosperidade do mercado? Onde se esconde a Nova Ordem Internacional anunciada por Bush e fundada na responsabilidade coletiva
das Nações Unidas? Ficou tudo
sepultado sob as montanhas de
cadáveres martirizados da Somália, da Bósnia, de Ruanda, do
Congo, do Sudão, perto das quais
fazem pálida figura as pirâmides
de crânios edificadas por Tamerlão.
A situação de quase monopólio
absoluto do poder estratégico e
militar de uma só superpotência
não bastou para evitar que se deteriorassem todos os três grandes
problemas políticos do começo
da década: a sanguinária desintegração da Iugoslávia, da qual o
capítulo de Kosovo se desenrola
sob nossos olhos; a dolorosa e interminável metástase da Federação Russa, sem fim à vista; a trágica frustração do processo de
paz na Terra Santa, onde se deu
justamente a partida para a contagem dos 20 séculos da nossa
era. Terminada a guerra fria e,
com ela, a corrida nuclear e o
equilíbrio do terror, seria natural que tivéssemos chegado mais
perto de um mundo livre de armas atômicas. Em vez disso, essas armas se espalharam por
mais dois países, a Índia e o Paquistão, irmãos inimigos já com
várias guerras entre eles no seu
meio século de independência.
Tampouco é alentador o panorama econômico. A única verdadeira história de sucesso no desenvolvimento dos últimos 30
anos, a Ásia do Leste e do Sudeste, vive crise sem precedentes e
pouco pode esperar do Japão, estagnado ou em recessão desde
1990. A crise já contagiou a Rússia e a América Latina, com sinais claros de que começa a provocar desaceleração nos Estados
Unidos e na Europa. A primeira
década da globalização e da liberalização ameaça tornar-se a de
crescimento mais medíocre desde o fim da Segunda Guerra.
Na economia não existe nada
que corresponda ao monopólio
do setor estratégico-militar. O
poder financeiro e comercial encontra-se melhor distribuído entre americanos, europeus e japoneses. Isso tem gerado, porém,
mais tensão do que genuíno
equilíbrio. Ao contrário, o persistente (dura já 15 anos quase) desequilíbrio macroeconômico entre os gigantescos déficits comerciais e em conta corrente dos
EUA, de um lado, e os simétricos
superávits no Japão e na Europa,
do outro, alimentam disputas e
antagonismos protecionistas que
dificultam a efetiva colaboração,
seja para controlar a excessiva
oscilação no valor respectivo das
moedas, seja para permitir o socorro eficaz à Ásia ou à Rússia.
Reabre-se a divergência entre
americanos e nipônicos sobre um
fundo monetário regional para a
Ásia e, às vezes, o tom das invectivas faz pensar no que os marxistas de antanho descreviam como "rivalidades intra-imperialistas".
A verdade é que a concentração do poder não levou nem à
imposição unilateral de uma
Pax Americana, nem à construção da segurança coletiva por
meio da da ONU. Esta última,
criação de Roosevelt e da grande
geração de americanos responsáveis pelo New Deal, a previdência social, a vitória aliada, o
Plano Marshall, não desperta o
mesmo interesse nos adeptos do
novo "centro vital" ou da "terceira via". Aparentemente mais entusiasmados pelo desmantelamento da previdência e pela expansão da aliança atlântica com
vocação planetária, alguns chegam até a dar a impressão de
querer criar versão moderna da
Santa Aliança, coligação de poderosos para a contenção, não
mais do expansionismo soviético
ou de outra ameaça precisa e definida, mas simplesmente para
congelar o "status quo", contra
não se sabe bem o quê ou quem.
Seria talvez a tentativa de superar a dissociação hoje existente entre monopólio estratégico-
militar e multipolarismo econômico, juntando finalmente os
abastados da terra em hegemonia compartilhada. O secretário-
geral da ONU já dirigiu advertência contra o perigo de estruturas que se arrogam responsabilidades globais sem a legitimidade
que só pode provir da vontade
coletiva e democrática dos povos
representados nas Nações Unidas.
Na crise iraquiana de fevereiro, o analista americano William Pfaff lembrava em artigo
no Herald Tribune que "Roma,
após derrotar Cartago (a União
Soviética da época, geopoliticamente falando), no 1º século a.C.,
tornou-se a única superpotência
do mundo ocidental (...). Entretanto, ser a única superpotência
foi fatal para a integridade moral e a competência política das
instituições representativas da
velha república romana". Pfaff
fazia, em seguida, um paralelo
com a república americana, que
já não lhe parecia em condições
particularmente favoráveis naquele momento, quando apenas
começava a investigação sobre o
presidente.
Dez meses depois, a mesma
conjunção entre o problema iraquiano e o processo de "impeachment" de novo se manifesta, desta vez mais violenta no
primeiro caso e mais dramática
no segundo.
Em homenagem a W.B. Yeats,
de quem tomei emprestado o título do artigo, não encontro para
expressar o que sinto ao ouvir as
notícias nada melhor do que alguns versos do poema "The Second Coming".
"As coisas caem em pedaços; o
centro não consegue manter-se;
Mera anarquia é despejada sobre o mundo,
Derrama-se a maré turva de
sangue e em toda a parte
É afogada a cerimônia da inocência;
Os melhores não têm nenhuma
convicção, enquanto os piores
Estão cheios de apaixonada intensidade"
²
²
Rubens Ricupero, 61, secretário-geral da
Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre
Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro
da Fazenda (governo Itamar Franco), escreve
aos sábados nesta coluna.
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