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São Paulo, quinta-feira, 20 de março de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Tempestade de aço

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Guerra. não há outro assunto. Todos os outros podem ficar para depois. Escrevo este artigo na quarta-feira à tarde. Quando o jornal estiver nas mãos do leitor (ou na tela do seu computador), a máquina militar norte-americana talvez já tenha desencadeado nova tempestade de aço sobre os iraquianos.
À luz da razão ou de considerações humanitárias, é uma guerra absurda e desnecessária. Essa é a avaliação amplamente majoritária no planeta.
Mas não nos Estados Unidos. O governo Bush tem aparentemente o apoio da maioria dos americanos -e isso conta mais do que a repulsa do resto do mundo.
Os críticos da guerra têm apresentado as explicações mais variadas para o comportamento do governo dos EUA. As mais populares enfatizam as motivações econômicas, em especial a questão do petróleo.
Os fatores econômicos têm, sem dúvida, peso explicativo considerável. Mas talvez não sejam os principais, e certamente não são os únicos. O que está em curso, fundamentalmente, é a reafirmação, indisfarçada, brutal, do poder dos Estados Unidos. Em outras palavras, para entender o que está acontecendo, Marx talvez ajude menos do que Nietzsche. "Die Welt von innen gesehen (...) wäre Wille zur Macht und nichts ausserdem" ("O mundo visto de dentro (...) seria vontade de poder e nada além disso"), dizia o segundo ("Além do Bem e do Mal", aforismo 36).
Paradoxalmente, entretanto, essa reafirmação de poder, da forma como está ocorrendo, dará lugar a um enfraquecimento da posição mundial dos EUA. Não me refiro apenas aos efeitos da guerra sobre o frágil quadro da economia norte-americana, aspecto que tem sido analisado por economistas norte-americanos como Barry Eichengreen e Paul Krugman em artigos publicados ou republicados recentemente por este jornal (ver, do primeiro, "Guerra custará além do esperado, e o Brasil vai pagar", Folha, 16 de março; e do segundo, "O que preocupa é o que virá depois", Folha, 19 de março).
Não se deve perder de vista que a invasão do Iraque ocorre depois de uma das maiores, talvez a maior derrota político-diplomática da história dos Estados Unidos. Apesar de intensas pressões e demorada campanha, os EUA não conseguiram a cobertura do Conselho de Segurança da ONU para a ação militar. Não conseguiram dobrar a França, a Rússia e a China, países com poder de veto no Conselho. Não obtiveram sequer o apoio de diversos outros membros temporários do Conselho, muitos deles países frágeis e normalmente suscetíveis aos agrados e ameaças da superpotência. Se os EUA tivessem levado a questão à votação, teriam sido derrotados, como se sabe.
É notável que os EUA não tenham assegurado o apoio do Chile, por exemplo. Nos bastidores, o governo Bush teria chegado ao ponto, segundo se noticiou, de insinuar que dificultaria a efetivação do recém-negociado acordo de livre comércio EUA-Chile, que os chilenos vêm buscando ardentemente há quase dez anos e que ainda depende da aprovação do Congresso dos EUA.
Mais notável ainda é o caso do México, outro membro temporário do Conselho de Segurança que, depois de algumas vacilações, também se recusou a acompanhar os EUA e o Reino Unido. É difícil lembrar um país que seja economicamente tão dependente dos EUA sob todos os pontos de vista (comércio exterior, investimentos, turismo, remessas de imigrantes etc.). Mas a imensa maioria dos mexicanos é contra a guerra, e o governo Fox acabou negando o seu apoio. "O gigante está fora de controle", comentou "off the record" um político próximo a Fox ("Miami Herald", 16 de março).
A resistência internacional aos propósitos de Washington só pode ser plenamente compreendida quando se leva em conta que a invasão do Iraque é a culminação de uma série de iniciativas unilaterais dos EUA. A disposição de ignorar ou violar regras e negociações internacionais tem sido uma das marcas registradas da administração Bush. O episódio da destituição do brasileiro José Mauricio Bustani do comando da Opaq (Organização para a Proscrição das Armas Químicas), lembrado no artigo da quinta-feira passada, foi uma das várias violências cometidas por Washington desde 2001.
Com a eclosão da guerra, as reações e o ressentimento do resto mundo tenderão a crescer. Washington encontrará obstáculos às suas iniciativas nos quatro cantos do planeta. A influência e a capacidade de liderar dos EUA, hoje bastante menores do que há três ou quatro anos, diminuirão ainda mais.
O poder norte-americano é inegavelmente colossal. Não obstante, os EUA não têm e não terão condições políticas, econômicas e demográficas de construir um mundo unipolar, sob seu estrito controle.
Por ironia, os arroubos imperiais do governo Bush acabarão provavelmente propiciando o resultado oposto: a consolidação de um mundo multipolar, em que o peso e o prestígio dos EUA serão menores do que seriam se os seus líderes políticos e estrategistas internacionais fossem mais sábios e ponderados.
  PS: No artigo da semana passada, prometi enviar texto do embaixador Bustani sobre o seu afastamento da direção da Opaq aos leitores que manifestassem interesse. Houve uma grande quantidade de pedidos (mais de 300), e continuam chegando. Estou cumprindo a promessa, mas aviso aos interessados que, nesse meio tempo, o texto foi colocado no site do Instituto de Estudos Avançados da USP (www.usp.br/iea/revista).


Paulo Nogueira Batista Jr., 47, economista, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).

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