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OPINIÃO ECONÔMICA
O enigma chinês
PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.
Nos próximos dias, o presidente da República fará
uma viagem de inegável importância à China. O nosso comércio
bilateral com aquele país está em
rápida expansão. É atualmente o
terceiro maior mercado para as
exportações brasileiras, depois
dos EUA e da Argentina. Os chineses são, além disso, um dos nossos principais aliados nas negociações em curso no âmbito da
OMC (Organização Mundial do
Comércio).
Tudo isso é sabido. Mas há um
outro aspecto da aproximação
com a China, não tão comentado,
que também poderia ser benéfico
para o Brasil: a possibilidade de
observar com mais cuidado o extraordinário sucesso da política
econômica chinesa. Os seus resultados são impressionantes para
qualquer observador estrangeiro,
especialmente para nós, latino-americanos, acostumados ao desempenho quase sempre entre
medíocre e desastroso de economias que trafegam na órbita do
chamado Consenso de Washington.
Bem sei que não é nada fácil
compreender um país tão distante e uma civilização tão diferente.
À China se aplica com certeza,
provavelmente "a fortiori", a famosa observação de Churchill sobre a Rússia de Stálin: "Uma charada embrulhada num mistério
dentro de um enigma". Apesar
disso, parece claro que a experiência da China não é compatível com as doutrinas e receitas
econômicas consideradas consagradas ou respeitáveis em países
como o Brasil.
A China constitui, por exemplo,
o desmentido mais dramático da
tese simplista de que o crescimento acelerado ameaça o controle
da inflação. A economia chinesa
tem registrado, há muito tempo,
taxas excepcionais de expansão.
Ninguém sabe ao certo quanto
tempo isso pode durar. Muitos
observadores norte-americanos e
europeus falam em aquecimento
excessivo e em risco de colapso.
Pode ser. Não tenho elementos
para avaliar. Mas o fato é que, entre 1996 e 2003, o PIB real chinês
aumentou nada menos que 8,2%
ao ano. Isso depois de ter crescido
a uma média anual de 9,9% no
período 1986-1995! Esse processo
de expansão foi impulsionado por
taxas de investimento sempre elevadas.
Apesar do ritmo frenético da
atividade econômica, a inflação
tem sido muito bem comportada.
Desde 1997, a taxa anual tem ficado próxima ou mesmo abaixo
dos níveis observados nos países
desenvolvidos. Em alguns anos,
houve deflação nos preços ao consumidor. Só muito recentemente
é que a inflação voltou a preocupar. A variação do índice de preços ao consumidor alcançou 3%
nos 12 meses até março, segundo
índices oficiais. Em razão da existência de controles governamentais sobre diversos preços, acredita-se que os dados oficiais estejam
subestimando a inflação real, que
pode já estar acima de 5%.
Em parte por isso, o banco central da China está considerando
aumentar a taxa de juro pela primeira vez em nove anos. Parece
outro planeta. Se aparecesse algum Henrique Meirelles por lá,
seria caçado a pauladas como
uma ratazana prenhe.
As taxas de juro na China têm
sido sempre moderadas. Entre
1999 e 2002, os juros para depósitos de um ano flutuaram entre
2% e 2,5% ao ano, em termos nominais. A taxa de curto prazo é
hoje de 4,4%, provavelmente negativa em termos reais. O custo
nominal de empréstimos bancários de um ano é de apenas 5,3%.
Nos termos da ortodoxia de galinheiro que passa por ciência
econômica no Brasil, só poderia
haver uma explicação para tal sucesso: a solidez dos "fundamentos
fiscais". Mas também nesse particular a experiência da China contraria as análises convencionais.
A política fiscal não é especialmente apertada ou disciplinada.
Apesar do extraordinário crescimento da economia, que favorece
a ampliação das receitas tributárias, e das reduzidas taxas de juro, que contribuem para moderar
as despesas com o serviço da dívida governamental, o déficit público na China, incluindo governos
central e locais, tem variado de
3% a 4% do PIB desde 1999.
Desconfio de que uma das razões, possivelmente a principal,
do desempenho macroeconômico
da China reside na força da sua
posição externa, que é objeto de
atenção cuidadosa e sistemática
por parte do governo. A taxa de
câmbio tem sido mantida em níveis competitivos. A conta corrente do balanço de pagamentos é
sempre superavitária, ano após
ano -apesar das elevadas taxas
de crescimento da demanda doméstica.
A moeda chinesa é inconversível. Os fluxos de capital não são livres. A exportação de capital por
firmas e famílias chinesas é rigorosamente controlada. Uma
eventual diminuição das restrições nessa área será feita com
cautela e de forma gradual. Nada
de aberturas financeiras dramáticas e precipitadas, como as que
ocorreram tantas vezes na América Latina. Por outro lado, a existência de controles não impediu a
China de atrair volumes muito
expressivos de investimento direto estrangeiro, quase US$ 50 bilhões por ano em 2002 e 2003, em
termos líquidos.
Não preciso nem me estender
sobre as celebradas reservas internacionais da China, que cresceram de forma espetacular, e até
excessiva, nos últimos anos. Alcançam atualmente quase US$
440 bilhões -sem contar as reservas de mais US$ 120 bilhões de
Hong Kong.
A China teria sido tão bem-sucedida se tivesse se adaptado aos
"consensos" econômicos internacionais? Provavelmente, não.
A frase de Churchill sobre a
Rússia tem uma continuação,
menos conhecida e que também
se aplica à China: "Talvez exista
uma chave para esse enigma. Essa chave é o interesse nacional da
Rússia".
Paulo Nogueira Batista Jr., 49, economista e professor da FGV-EAESP, escreve
às quintas-feiras nesta coluna. É autor
do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).
E-mail - pnbjr@attglobal.net
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