São Paulo, quinta-feira, 20 de maio de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

O enigma chinês

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Nos próximos dias, o presidente da República fará uma viagem de inegável importância à China. O nosso comércio bilateral com aquele país está em rápida expansão. É atualmente o terceiro maior mercado para as exportações brasileiras, depois dos EUA e da Argentina. Os chineses são, além disso, um dos nossos principais aliados nas negociações em curso no âmbito da OMC (Organização Mundial do Comércio).
Tudo isso é sabido. Mas há um outro aspecto da aproximação com a China, não tão comentado, que também poderia ser benéfico para o Brasil: a possibilidade de observar com mais cuidado o extraordinário sucesso da política econômica chinesa. Os seus resultados são impressionantes para qualquer observador estrangeiro, especialmente para nós, latino-americanos, acostumados ao desempenho quase sempre entre medíocre e desastroso de economias que trafegam na órbita do chamado Consenso de Washington.
Bem sei que não é nada fácil compreender um país tão distante e uma civilização tão diferente. À China se aplica com certeza, provavelmente "a fortiori", a famosa observação de Churchill sobre a Rússia de Stálin: "Uma charada embrulhada num mistério dentro de um enigma". Apesar disso, parece claro que a experiência da China não é compatível com as doutrinas e receitas econômicas consideradas consagradas ou respeitáveis em países como o Brasil.
A China constitui, por exemplo, o desmentido mais dramático da tese simplista de que o crescimento acelerado ameaça o controle da inflação. A economia chinesa tem registrado, há muito tempo, taxas excepcionais de expansão. Ninguém sabe ao certo quanto tempo isso pode durar. Muitos observadores norte-americanos e europeus falam em aquecimento excessivo e em risco de colapso.
Pode ser. Não tenho elementos para avaliar. Mas o fato é que, entre 1996 e 2003, o PIB real chinês aumentou nada menos que 8,2% ao ano. Isso depois de ter crescido a uma média anual de 9,9% no período 1986-1995! Esse processo de expansão foi impulsionado por taxas de investimento sempre elevadas.
Apesar do ritmo frenético da atividade econômica, a inflação tem sido muito bem comportada. Desde 1997, a taxa anual tem ficado próxima ou mesmo abaixo dos níveis observados nos países desenvolvidos. Em alguns anos, houve deflação nos preços ao consumidor. Só muito recentemente é que a inflação voltou a preocupar. A variação do índice de preços ao consumidor alcançou 3% nos 12 meses até março, segundo índices oficiais. Em razão da existência de controles governamentais sobre diversos preços, acredita-se que os dados oficiais estejam subestimando a inflação real, que pode já estar acima de 5%.
Em parte por isso, o banco central da China está considerando aumentar a taxa de juro pela primeira vez em nove anos. Parece outro planeta. Se aparecesse algum Henrique Meirelles por lá, seria caçado a pauladas como uma ratazana prenhe.
As taxas de juro na China têm sido sempre moderadas. Entre 1999 e 2002, os juros para depósitos de um ano flutuaram entre 2% e 2,5% ao ano, em termos nominais. A taxa de curto prazo é hoje de 4,4%, provavelmente negativa em termos reais. O custo nominal de empréstimos bancários de um ano é de apenas 5,3%.
Nos termos da ortodoxia de galinheiro que passa por ciência econômica no Brasil, só poderia haver uma explicação para tal sucesso: a solidez dos "fundamentos fiscais". Mas também nesse particular a experiência da China contraria as análises convencionais. A política fiscal não é especialmente apertada ou disciplinada. Apesar do extraordinário crescimento da economia, que favorece a ampliação das receitas tributárias, e das reduzidas taxas de juro, que contribuem para moderar as despesas com o serviço da dívida governamental, o déficit público na China, incluindo governos central e locais, tem variado de 3% a 4% do PIB desde 1999.
Desconfio de que uma das razões, possivelmente a principal, do desempenho macroeconômico da China reside na força da sua posição externa, que é objeto de atenção cuidadosa e sistemática por parte do governo. A taxa de câmbio tem sido mantida em níveis competitivos. A conta corrente do balanço de pagamentos é sempre superavitária, ano após ano -apesar das elevadas taxas de crescimento da demanda doméstica.
A moeda chinesa é inconversível. Os fluxos de capital não são livres. A exportação de capital por firmas e famílias chinesas é rigorosamente controlada. Uma eventual diminuição das restrições nessa área será feita com cautela e de forma gradual. Nada de aberturas financeiras dramáticas e precipitadas, como as que ocorreram tantas vezes na América Latina. Por outro lado, a existência de controles não impediu a China de atrair volumes muito expressivos de investimento direto estrangeiro, quase US$ 50 bilhões por ano em 2002 e 2003, em termos líquidos.
Não preciso nem me estender sobre as celebradas reservas internacionais da China, que cresceram de forma espetacular, e até excessiva, nos últimos anos. Alcançam atualmente quase US$ 440 bilhões -sem contar as reservas de mais US$ 120 bilhões de Hong Kong.
A China teria sido tão bem-sucedida se tivesse se adaptado aos "consensos" econômicos internacionais? Provavelmente, não.
A frase de Churchill sobre a Rússia tem uma continuação, menos conhecida e que também se aplica à China: "Talvez exista uma chave para esse enigma. Essa chave é o interesse nacional da Rússia".


Paulo Nogueira Batista Jr., 49, economista e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).
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