São Paulo, terça-feira, 20 de julho de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Guerra da geladeira

BENJAMIN STEINBRUCH

Relações comerciais devem guiar-se pelo bom senso, mercadoria indispensável na mais recente disputa entre Brasil e Argentina, a denominada "guerra da geladeira". Para o Brasil, bom senso, neste momento, é adotar posições conciliatórias, para não transformar a disputa em uma guerra comercial de fato. Para a Argentina, bom senso seria olhar para os números da balança comercial e reconhecer que o Brasil está muito longe de ser o responsável pelas desgraças argentinas.
Vale a pena observar os números da tabela que acompanha este texto: nos dez anos de existência do Mercosul, a Argentina acumulou superávit de quase US$ 10 bilhões em seu intercâmbio comercial com o Brasil.
Em 2001 e 2002, a Argentina viveu talvez os dois anos mais dramáticos de sua história econômica, quando foi levada à atitude desesperada da moratória e ficou totalmente sem crédito internacional. Naqueles dois anos, por meio de uma política comercial e creditícia compreensiva, o Brasil permitiu que o país vizinho mantivesse um ritmo razoável de exportações e tivesse grandes superávits (US$ 1,2 bilhão em 2001 e US$ 2,4 bilhões em 2002), um alívio para a sua sede de divisas.
Várias vezes escrevi a favor dessa posição compreensiva do governo brasileiro, sob o argumento de que a solidariedade de parceiros se revela nos momentos mais difíceis. Ainda na semana passada, o chanceler brasileiro, Celso Amorim, disse que o Brasil não quer guerra econômica e terá paciência com Buenos Aires.
De fato, não se pode negar aos argentinos, aos empresários e ao governo o direito de usufruir do seu mercado interno, que está em forte recuperação depois de uma recessão brutal, nem de proteger setores que considerem estratégicos ou sensíveis para a indústria local. Também advogo isso para o Brasil. Mas, numa relação de parceria como a do Mercosul, é inaceitável o comportamento do tipo "bater primeiro para conversar depois" adotado pelo lado argentino.
Há duas semanas, o governo argentino anunciou restrições às importações de eletrodomésticos da linha branca e de televisores brasileiros. Até aí, tudo bem. Inaceitável foi a medida ter sido baixada no momento em que empresários dos dois países negociavam a criação de cotas para limitar voluntariamente as vendas. Armada a confusão, o governo argentino explicou que a resolução ainda dependia de regulamentação para entrar em vigor, numa demonstração de que usara a medida de força para pressionar os empresários brasileiros a refrear suas reivindicações. As cotas depois fixadas para geladeiras e fogões mostram que o objetivo foi atingido.
Para o consumidor argentino, essa presença menor de produtos brasileiros não é boa notícia. Os eletrodomésticos brasileiros são sabidamente mais baratos e de melhor qualidade que os argentinos, por conta do atraso tecnológico e da falta de investimentos da indústria portenha. Foram os próprios argentinos, no governo Carlos Menem, que levaram seu parque industrial à ruína. Primeiro adotaram uma abertura precipitada do mercado. Depois extinguiram incentivos setoriais para a industrialização e, finalmente, mantiveram até o limite extremo uma política cambial desastrada, conhecida como "lei da conversibilidade", que minou a competitividade do produto argentino no exterior.
Corrigir essas distorções é um direito e um dever dos argentinos. Mas eles não podem usar o artifício de levantar suspeitas sobre mecanismos brasileiros de apoio às exportações. As linhas do BNDES, por exemplo, estão de acordo com as normas da OMC (Organização Mundial do Comércio). A decantada "invasão" de produtos brasileiros não se dá em razão de subsídios ocultos. Se prevalecer essa tese, outros produtos poderão sofrer novas restrições, como automóveis, têxteis, calçados, máquinas agrícolas, carne suína e de frango, os generais comandantes dessa "invasão".
Na semana passada, vários setores da indústria argentina já ensaiavam retomar a discussão sobre a importação desses produtos brasileiros, com a idéia de criar exceções tarifárias e outras medidas protecionistas. Até agora, o Brasil suportou com benevolência as malcriações argentinas. Mas, convenhamos, paciência tem limite.
Nestes tempos de metáforas futebolísticas, tão ao gosto do presidente Lula, pode-se dizer que o Mercosul sobreviveu até agora porque o Brasil agüentou sem reclamar uma goleada argentina, de 10 a 0, no jogo da balança comercial durante os primeiros nove anos do acordo regional. Neste ano, quando pela primeira vez o Brasil fez um golzinho ao conseguir o superávit no primeiro semestre, tenta-se anulá-lo, reclama-se do juiz e propõem-se mudanças nas regras do jogo. Assim, não dá.


Benjamin Steinbruch, 50, empresário, é diretor-presidente da Companhia Siderúrgica Nacional e presidente do conselho de administração da empresa.

E-mail - bvictoria@psi.com.br


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