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OPINIÃO ECONÔMICA
A guerra errada
RUBENS RICUPERO
Quando a intervenção chinesa na Guerra da Coréia
ameaçava expulsar da península
as tropas da ONU, o general MacArthur propôs medidas que, escreveu André Fontaine, até hoje
nos causam calafrios: lançar de 30
a 50 bombas atômicas sobre as bases estratégicas na Manchúria, desembarcar meio milhão de soldados nacionalistas de Tchang Kai-chek e, após a derrota chinesa, estabelecer uma barragem de cobalto radioativo ao longo da fronteira
sino-coreana no rio Yalu.
Diante de tal manifestação de
insânia e de atos de aberta insubordinação, o presidente Truman
não hesitou em tomar a decisão
impopular de destituir o comandante-em-chefe, acolhido nos
EUA com triunfo de herói romano. Coube ao general Bradley jogar a pá de cal definitiva na controvérsia, ao declarar que um ataque contra o território da China
continental teria sido "a guerra errada no lugar errado, no momento errado, contra o inimigo errado".
O que Bradley queria dizer era
que a verdadeira ameaça provinha então das forças soviéticas no
coração da Alemanha e da Europa, não da intervenção chinesa
num rincão periférico do planeta.
A frase soa aos nossos ouvidos como sentença perfeita do julgamento que se impõe, decorrido um ano
da invasão do Iraque. A escolha de
Bagdá como alvo foi justificada
como prioridade na luta contra o
terrorismo fundamentalista da Al
Qaeda e o risco de proliferação de
armas de destruição de massa.
Um ano depois, qual é o balanço
dos resultados alcançados em relação a esses objetivos?
Quanto ao terrorismo, calculou
a revista "Newsweek" que o número de atentados nos 30 meses
após o 11 de Setembro é maior do
que nos 30 anteriores. Conforme se
acaba de ver na Espanha, eles se
estenderam a continentes poupados até data recente (atualmente,
a América Latina é o único continente não atingido pela última
onda terrorista). Apesar de terem
sido mortos ou capturados dois
terços dos dirigentes da Al Qaeda,
confiscados cerca de US$ 150 milhões do tesouro do grupo e destruído o governo taleban, que lhe
proporcionava abrigo, a rede terrorista tornou-se descentralizada
e, segundo os serviços de inteligência, continua capaz de montar
operações de envergadura. Ela se
espraiou em inúmeras células diluídas e disfarçadas na gigantesca
diáspora muçulmana, com liderança menos experiente e conhecida, mas radicalizada e pronta a
operar de maneira crescentemente
autônoma.
Os britânicos aprenderam na Irlanda do Norte que, mesmo com a
maioria da liderança na prisão e
reduzido a 600 militantes, o IRA
conseguia imobilizar 25 mil soldados de Londres. Não é diversa a
perspectiva que nos espera no caso
do terrorismo islâmico: as soluções
simplistas e imediatas não existem.
As armas de destruição maciça
não foram encontradas nem por
um exército de inspetores americanos com total liberdade de ação,
uma vez que ocupam militarmente o território iraquiano. A razão
foi dada pelo próprio inspetor-chefe ianque: essas armas já haviam
sido destruídas, de acordo com os
relatórios de Hans Blix e dos inspetores da ONU, nunca desmentidos.
A invasão do Iraque teve certamente um efeito dissuasivo sobre
regimes como o líbio e o sírio, mas
seria isso suficiente para justificar
introduzir um gravíssimo fator
adicional de complicação em região já desestabilizada pelo intratável conflito entre palestinos e israelenses? Não estava já em curso
na região uma evolução positiva
que se poderia acentuar com outros métodos, sem correr o risco de
incalculável agravamento da situação?
Tudo isso havia sido dito e redito
antes da invasão, e ninguém o fez
com mais clarividência e incansável firmeza do que João Paulo 2º.
Tudo em vão. A conseqüência é
que, 12 meses após o início da
guerra, as condições de segurança
no Iraque se deterioram dia a dia,
não obstante a prisão de Saddam
Hussein, de quase todos os antigos
membros do governo, de cerca de
10 mil pessoas, incluídos 400 guerrilheiros de outros países árabes.
Como conceber o retorno da ONU,
da Cruz Vermelha num país onde
qualquer civil, estrangeiro ou nacional, passou a ser uma indefesa
vítima em potencial? O Iraque de
Saddam tinha muitos problemas,
exceto um, que só começou a existir com a ocupação: o terrorismo
indiscriminado e selvagem contra
tudo e contra todos. A guerra para
acabar com o terrorismo se salda
com um fato irrefutável: o terrorismo não só não diminuiu nas zonas já infestadas mas adquiriu novos e promissores territórios.
Minha análise, quase toda factual, não visa a sugerir que objetivos como a democratização do
Iraque ou o grande desígnio de
transformar o inteiro Oriente árabe não sejam, em tese, desejáveis.
O problema é indagar se eles serão
realisticamente exequíveis dentro
de equação razoável de custos e
benefícios. Os que fizeram aposta
exorbitante nesse jogo de azar, isto
é, o partido da guerra, deveriam
ter antes calculado quanto custaria completar a tarefa em vidas
humanas, recursos financeiros,
desgaste político-diplomático, reação pacifista mundial. Nessa estimativa, teria sido necessário
igualmente comparar o custo-benefício da operação iraquiana
com o de outras alternativas mais
diretas, menos traumáticas e controvertidas no combate ao terrorismo e à proliferação de armas.
Sou dos que partilham esses dois
objetivos e acreditam que devemos ser solidários com os povos vítimas do terrorismo onde quer que
seja e, no caso atual, com os povos
americano e espanhol. Mas, para
tanto, é preciso definir estratégia
realista, não grandiloquente; generosa em tratar as raízes do fenômeno -sociais, econômicas, o
problema palestino-, não concentrada apenas nos sintomas;
aberta ao diálogo com a ONU e a
outros países, não unilateral e excludente. "In illo tempore", conforme se lê no Evangelho, já dizia
Jesus que, antes de marchar contra
um rei estrangeiro ou iniciar a
construção de uma torre, é indispensável verificar se temos os soldados, o dinheiro e a vontade de
empregá-los por décadas, gerações, caso necessário. Do contrário, é melhor não começar.
Ora, o que estamos vendo é que,
passado um ano e confirmados os
piores prognósticos, mal se disfarça o desejo de abandonar a partida o mais cedo possível e, sobretudo, antes das eleições americanas.
A Espanha, onde a soberania popular, base da democracia, derrotou um governo que insistia em ignorá-la, apenas se adianta em dizer alto e bom som o que outros dizem "sotto voce". Daí, a insistência em querer dar à ONU uma
missão talvez impossível, agora
que o problema complicou inutilmente.
Em outras palavras, solidariedade não exige aceitar estratégia
equivocada e contraproducente,
mas sim aconselhar o reexame do
curso seguido até agora, a fim de
mudar enquanto é tempo. O primeiro passo é confessar o equívoco
e reconhecer que à guerra de um
ano atrás se aplica a frase erroneamente atribuída a Fouché ou a
Talleyrand, a propósito da execução, sob ordens de Bonaparte, do
duque d'Enghien, por curiosa
coincidência em 21 de março de
1804, exatamente 200 anos antes
da publicação deste artigo: "É
mais do que um crime, é um erro".
Rubens Ricupero, 67, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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